Manuel Viegas Guerreiro: saber de experiência feito
POR JOAQUIM CERQUEIRA GONÇALVES
Circunstanciais iniciativas surpreendem, frequentemente, com fecundos resultados. Aqueles que conviveram com Manuel Viegas Guerreiro, conhecendo o seu estilo de vida, dificilmente imaginariam o modo como acolheu o convite para participar em um colóquio sobre o sagrado [1]. Em pequeno texto, ajustado aos moldes de uma comunicação, MVG desenha a raiz e o tronco da árvore das razões do seu saber, das suas preferências, dos seus mais irrecusáveis pressupostos, enfim, da sua não condescendência com voláteis teses de espumas culturais produzidas em estéreis gabinetes. Esse seu texto monta a arquitetura teórica que, inconscientemente, deu suporte ao seu convivial modo de viver e de dizer, em lhano diálogo quotidiano, sendo este de mais longo alcance do que a obediência a um rígido código linguístico-científico.
Se o estímulo exterior, o mencionado convite para participar no colóquio, passou a ser a condição sine qua non da existência deste texto de MVG, a adesão ao tema orientador, o sagrado, constitui já compromisso mais determinante, onde se cruzam questões de afinidades e de controvérsias de grande fôlego especulativo. Sabe-se, e Viegas Guerreiro confirma explicitamente, que o termo sagrado conduz a sentidos enormemente diversificados [2], nos quais figuram também referências religiosas, sendo em redor destas que MVG vai orientar o discurso da sua comunicação, aliás, observe-se desde já, de forma em boa parte enviesada, pois, se os alvos da sua crítica, têm a ver com solenes interpretações sobre a natureza e formas da religião, não é verdadeiramente esta que o Prof. Viegas Guerreiro analisa, mas, sim, um suposto dela, polo nuclear das religiões monoteístas, a questão de Deus, que é geralmente aprofundado no âmbito da Filosofia e Teologia, sem, todavia, se ocupar da fenomenologia das múltiplas formas religiosas, algumas das quais nem sequer desfrutam de constitutivos nexos com a transcendência. Em terminologia estabelecida na modernidade, esses estudos que, de certo modo, julgam, aliás indevidamente, ocupar-se de uma suposta religião natural, constituem o objeto da Teodiceia.
Tratando-se indiscutivelmente de uma questão de grande complexidade, que se tem mantido viva em todos os séculos, merece, todavia, atenção o modo como ela é formulada por Viegas Guerreiro, o qual, considerando-se, embora, distante da Filosofia e da Teologia – destas “nem sequer hóspede sou”… -, a vai abordar, em jeito de compromisso irrenunciável, enquanto etnólogo, conjugando, com certa espontaneidade, Ciência, Filosofia e Teologia, cuja história da relação entre estas tem sido preenchida por insanáveis conflitos, como se a vida de cada uma delas dependesse da desautorização teórica das outras duas. Todavia, essa exasperação de âmbito teórico é frequentemente superada no discurso quotidiano, cuja concretização, aliás, muitos de nós tiveram oportunidade de o verificar, de modo não programado, nas despretensiosas intervenções orais de Viegas Guerreiro. Mas é, contudo, significativo, por um lado, que o etnólogo chame a questão a debate, e, por outro, a tenha acompanhado com alguns assomos de indignada discussão.
No século das luzes – refere-se particularmente ao século XVIII-XIX -, os racionalistas franceses e ingleses [3] forjaram uma teoria evolucionista da cultura, a ponto de admitirem, numa seriação temporal hierarquizada, a existência de povos atrasados, os “primitivos”, se comparados com o solene momento do progresso científico. Mais ainda, tais “primitivos” careceriam da estrutura lógica da racionalidade das sociedades modernas. “Em meu tempo de estudante inundava-nos o prelogismo de Lévy-Brühl.” [4]. Contra essa “Antropologia de gabinete” [5], se ergue, frontalmente, Viegas Guerreiro, assumindo o papel do etnógrafo do nosso tempo, que não cuida de buscar as origens do sagrado, mas, sobretudo, observá-lo e descrevê-lo, em sua íntima relação com os outros aspetos da cultura [6]. É no convívio com os Macondes de Moçambique – “E vamos até aos nossos Macondes”, impõe-se a si próprio, com terna humanidade, Viegas Guerreiro [7] – que este investigador vai descobrindo o essencial perfil antropológico, o dele próprio e o daqueles com quem convive, sublinhando os traços que seguidamente se equacionam, os quais, na sua configuração de convergente pluralidade, robustecem uma viva e consistente unidade:
a) Constituição racional de todos os humanos, em todas as épocas e latitudes;
b) Natureza dinâmica da razão que, no seu exercício, ruma, naturalmente, em direção à transcendência;
c) Nesse constitutivo movimento humano de transcendência, situa MVG a religião (área desencadeada, por afinidade, com o tema do colóquio, o sagrado[8]);
d) Característica monoteísta do transcendente, sobre cuja natureza, todavia, pouco se pode afirmar, legitimando-se, por isso, uma aproximação com a denominada teologia negativa [9].
Sem se pretender esgotar os múltiplos horizontes para que se abre este pequeno texto destinado a ser apresentado em um colóquio, é legítimo ver nele a arquitetónica especulativa da obra do seu autor, bem como, senão sobretudo, uma intencional afirmação do posicionamento racional de Manuel Viegas Guerreiro sobre as grandes coordenadas humanísticas da cultura ocidental, pessoalmente assumidas, incluindo a categoria religiosa, não no sentido de uma opção de uma determinada manifestação exterior, mas na fidelidade à dinâmica transcendente de toda a vida humana [10].