Escavar a fala, Viegas Guerreiro e Varejota à luz de Martin Heidegger
POR LUÍSA MONTEIRO
RESUMO: Para o presente artigo são convocados Heidegger, o poeta popular Silva Varejota, por intermédio de Manuel Viegas Guerreiro e Platão. Sendo a fala um ato solitário da linguagem que concorre para a potencialidade ontológica do ser-com-outros, indaga-se até que ponto é que o falar poético, dito ou cantado, não propicia uma abertura retroativa, um voltar de novo à “caverna”, tal como na alegoria de Platão.
PALAVRAS-CHAVE: Fala – Morte – Heidegger – Viegas Guerreiro – Varejota – Caverna.
Escavar significa trabalhar a terra, mas também estudar profundamente. É o ato intencional de criar concavidades, cavernas para obviar o que está abaixo da superfície; assim acontece com o homem que cava a terra para sustento do corpo e com o que escreve para sustento do logos, vivendo o permanente conflito entre a experiência e o pensamento. Tal não é alheio tanto ao filósofo Martim Heidegger (1889-1976) como ao quase desconhecido poeta popular Silva Varejota (1865-1905). E não o será também para Viegas Guerreiro (1912-1997), autor do artigo “O Homem e a Terra em um Poeta popular do Algarve”, publicado em 1977 na brochura Natureza e paisagem do Serviço Nacional de Parques, Reservas e Património Paisagístico, afeto à então Secretaria de Estado do Ambiente.

Da “atmosfera”
Um dos princípios da referida publicação é, curiosamente, o de “inculcar em quem ainda a não tenha, a consciência da nossa pequenez perante a vida” (Guerreiro, 1977, p. 55). O segundo número, de março, traz à capa uma fotografia de Querença, e nele encontramos um breve texto de Manuel Viegas Guerreiro onde enuncia (ou anuncia) a voz de um poeta popular como uma combinação de “Ciência, Filosofia e intuição poética” (idem). Traz a voz do povo numa altura em que Trigo de Morais assina, no anterior mês de janeiro, pelo secretário de Estado da Indústria Ligeira, a distribuição da Coca-cola em Portugal.
Nesse ano, o punk conquistava jovens portugueses pela excentricidade de David Bowie, Sex Pistols, The Ramones e outros, os quais competiam nas telefonias com o fado de Amália, elevado 34 anos depois à categoria de Património Cultural e Imaterial da Humanidade pela UNESCO (27.11.2011). Os mais velhos colavam-se à televisão, sonhando com as maravilhas do concurso “A visita da Cornélia” e suspirando com a primeira telenovela brasileira “Gabriela, Cravo e Canela”, a partir do romance homónimo de Jorge Amado; começou a ser emitida a preto e branco, fez parar a nação e disparar os divórcios até então ainda tolhidos pela trindade moral de “Deus, Pátria e Família”.
A contrapor ao olhar de todos para fora, o etnólogo Viegas Guerreiro chama a atenção para o olhar para dentro, para as raízes, para a voz e fala de um poeta desconhecido. Fá-lo num período em que se dividia entre a Faculdade de Letras de Lisboa, onde era professor de Etnologia Geral e Etnologia Regional, do curso de Geografia, o Centro de Estudos Geográficos (do antigo Instituto Nacional de Investigação Cientifica), onde dirigia uma linha de Ação de “Recolha e Estudos de Literatura Popular Portuguesa”, o Programa Trabalho e Cultura do Serviço Cívico Estudantil, que dinamizava com Michel Giacometti e ainda o Museu Etnológico Dr. Leite Vasconcellos (Fonseca, 1998) a par dos estímulos derivados da boa receção do seu Guia de recolha de literatura popular, editado no ano anterior.
Querença, a sua terra natal: uma aldeia entre a serra e o barrocal do concelho de Loulé, situada no topo do monte que lhe dá o nome, que significa querer bem a alguém ou a algo. No centro, a Igreja seiscentista de Nossa Senhora da Assunção, um pelourinho, algumas casas pequenas em seu redor; e ao redor deste redor, vegetação e leitos de água, é tudo quanto a vista alcança. Para entrar ou sair da aldeia, passava-se outrora por um caminho ladeado a valados, muros onde se espelhavam as sombras de quem vinha ou ia, como na descrição de espaço que Sócrates faz a Gláuco a abrir o Livro VII de A República.
Face a um país em grande transformação e saído há pouco de um regime ditatorial, Viegas Guerreiro “regressa” a Querença para dizer de um poeta que habita o centro da sua terra, alguém que “reflete e constrói a sua própria filosofia” numa atitude conformada de quem “aceita que foi feito de pó da terra e em pó se há-de formar” (Guerreiro, 1977, p.52), levando-nos a pensar em Silva Varejota de enxada aos ombros pelos caminhos, tal como em Heidegger de bengala na mão a remexer a terra na sua “vilória” de Messkirch. Um, sem instrução, criando e reproduzindo a sua poesia somente pela fala e memória, o outro celebrado pelo seu pensamento que há muito havia ultrapassado os portões da Universidade de Friburgo, onde ocupara o lugar de Husserl na cátedra de Filosofia e do qual fora afastado.
1. Ser “ser para a morte”
Para Viegas Guerreiro, a possibilidade de pensar os fenómenos não está alheia ao conhecimento empírico:
O poema que vem da boca do povo precedeu-o, por vezes, longa meditação. Na rabiça do arado ou no trabalho oficinal, vai o espírito organizando a peça literária que a voz ou as poucas letras reproduzem. […] À ciência do povo chama-se-lhe sabedoria, conhecimento empírico que lhe não dá para conhecer as verdadeiras causas dos fenómenos que observa, um empirismo bruto que o confina a uma limitada actividade intelectual, como se um saber profundo senão alcançasse no livro aberto da natureza, no do convívio dos homens, na experiência do quotidiano. (1986)
A alusão bíblica referida, não tolda a sua visão genérica sobre a relação do homem com a arte e com a natureza propriamente dita. Logo alerta de que o poeta em questão “não é um ser em outro ser, uma natureza em outra natureza, mas um elo da cadeia da vida que perpetuamente se renova” (Guerreiro, 1977, p.55), e com isso remete-nos para o seu pensamento fenomenológico, onde não existe uma consciência pura, antes uma consciência de algo, para algo, constituindo-se como fonte dinâmica inesgotável de significado para o mundo.
Heidegger não vê na coisa física a natureza no seu sentido comum, antes no sentido de phýsis, aquilo que se opõe a uma consciência que se encontra apartada dessa natureza física e que o logos é o espaço assumido por aquilo que se revela e se deixa recolher enquanto algo passível de ser pensado, distinto por isso do representativo, do que já se presentificou. Deste modo, a consciência do ser visualiza aquilo que originariamente já se apresentou, se des-velou, e é esta compreensão originária, o âmbito onde se ancora o logos, o espaço instaurador de possibilidades, nomeadamente, o espaço da consciência.
Viegas Guerreiro nota que o poeta “abre, efetivamente, os olhos para o mundo, observa, experimenta, reflete e constrói a sua própria filosofia” (1977, p.55). Por outras palavras, a sua construção poética é a construção do ser, desse “ser-aí” (Dasein) como ente que se encontra sempre no mundo e que não pode ser pensado de outro modo[1]. Gadamer (2000, p.73) faz notar que através de Heidegger “descobriu-se que, mesmo na chamada percepção, se dá uma compreensão-de-algo-como-algo hermenêutica. Mas isto significa, em última consequência, que a interpretação não é um procedimento adicional do conhecimento, mas constitui a estrutura originária do ser-no-mundo”. A arte entra nesta “estrutura originária do ser no mundo”.
No caso da arte popular, encontra-se intimamente ligada a duas faces paralelas: a natureza, propriamente dita (espaço de deus, do éter, do fora, da ameaça, mas também do sustento físico), e a casa, (espaço do homem, do corpo, do dentro, da proteção, mas também do sustento das paixões). O homem vive entre, e com, ambos os espaços. A partir do momento em que se opera a possibilidade de posse do que se encontra fora, ele passa a habere, ou seja, a possuir/habitar no fora e no dentro. É a condição de habitante que lhe dá acesso às possibilidades dos espaços, das faces casa/terra e natureza/mundo. Nesta dicotomia de posse e de uso opera-se a interrogação face aos fenómenos, pelo que a arte nasce como forma de domínio desses mesmos fenómenos. A arte só captura aquilo que o homem habita e aquilo que habita o homem, seja da ordem do medo, da dúvida, do sonho ou do desejo. Assim, a arte “nasce” constituindo-se também ela fenómeno. Até certo ponto, este pensamento pode ser ilustrado pelos versos de Silva Varejota do poema escolhido por Viegas Guerreiro: “eu na terra é que semeio / de todo o meu alimento /[…] isto é a verdade pura/tudo na terra é criado / depois torna ao mesmo estado” (1977, p. 54).
Considerando que o ato criador é fonte de intencionalidades, o homem e a terra não podem encerrar em si conceitos que o limitam ao conjunto das coisas que o rodeia. Para o poeta de Querença, é da correlação terra-ser que ocorrem as possibilidades concretas de se dar sentido às manifestações humanas, ou seja, o ser-no-mundo. Heidegger acrescentar-lhe-ia mais duas facetas: o celeste e o divino, sendo no ponto de cruzamento desta “Quadrindade”[2] o o-aí, o ponto de eleição para a coisa incerta, precária, mas também nó de acontecimento.
Não obstante o sagrado expresso no poema do artigo de Viegas Guerreiro, ele não é assumido como princípio, nem assume um dos seus princípios fundamentais: o da ressurreição. O poeta é claro: a morte concretiza em si o fim da experiência: “o corpo da criatura/é só terra e nada mais”, não concedendo a ideia de eternidade à existência humana; finitude e regresso à natureza ou a morte como um bilhete de regresso: “a terra é minha mãe/não no posso duvidar/e para esta me criar/tudo da terra me vem”, menos o “uso da razão”, cedido por Deus como ordem ou um recado: “Deus à terra me mandou / com o uso da razão”. Deus é um-outro, alguém que empresta a possibilidade de compreender e de empreender, um ente exterior à relação que o poeta-filho tem com a sua mãe-terra: por esta gerado, criado e com ela comprometido para que a si regresse à medida que for “morrendo”, para que a mãe se alimente do filho que alimentou: “a terra me há-de comer”.
Apoiado no provérbio popular, esta “mãe” não pode ser vista como a Gaia, Terra-Mãe ou Grande-Mãe dos mitos das sociedades agrárias, sedutora de seus próprios filhos, mas também protetora quanto a tudo que possa ameaçar a sua fecundidade constante, a sua maternidade. Só não consegue proteger os procriados do seu irmão Cronos, ou seja, do envelhecimento.
Não é Gaia, mas sim Hera, quem preside ao pensamento simbólico de Silva Varejota e os seus filhos, na terra, todos são Hefesto, o coxo (um trabalhador sem a perfeição física dos deuses, nascido de Hera autónoma que o deu à luz por partenogénese, sem pai, ou quando muito, filho do vento). Quando o homem que trabalha a terra começa a “coxear” e deixa de dominar a técnica, o machado, o martelo, a palavra ou outros utensílios (roubado ao pai, no caso de Hefesto, que lhe cedeu a razão), esta Mãe (deusa da família, com raízes nos mitos mais arcaicos), por vergonha, mata-os e recolhe-os de novo em si, escondendo-os da possibilidade de serem vistos na sua feiura[3]. O corpo que indica o aí de uma vida, cumpriu-se. Como nota Irene Borges-Duarte, “Ser mortal é uma forma mais simples e menos pretensiosa, sem vagas evocações escatológicas, de falar no que, em Ser e Tempo, se dizia como ‘ser para a morte” (2021).
O poeta não parece angustiado com a ideia de fim e há mesmo uma leveza de ânimo não só conferida pela rima, pela musicalidade, como pela repetição sem negatividade da ideia de que a Terra-Mãe devora”: é que o poema, essa arte da fala, comemora o triunfo da “coisa” experienciada.
2. Escavar a fala
A linguagem é o elemento que diz do habitar, da co-existência, da pertença e do enlace entre as faces. Para Heidegger é na relação humano / linguagem que se abre, ou constrói um caminho para que sejamos nós próprios o caminho. Este em-caminhar (be-wëgen) não significa acrescentar algo mais ao caminho já existente, mas intensificar o humano no centro da relação, que é onde repousa a sua essência; e a marca distintiva dessa “essência” é o facto de ele ser linguístico. Assim, a marca da essência da linguagem é ser humana.
No caminho, o homem, em consonância com a essência da linguagem, torna-se presente e manifesto daquilo que é, e deixa, em conjunto com outros (a quem mostra aquilo que se manifesta), a linguagem enquanto “dito”, enquanto fala. Diz-nos em O caminho da linguagem: ([1959] 2003, p. 215)
A linguagem foi chamada de a “casa do ser”. Ela abriga o que é vigente à medida que o brilho do seu aparecer se mantém confiado ao mostrarapropriante do dizer. Casa do ser é a linguagem porque, como saga do dizer, ela é o modo do acontecimento apropriador.
A “casa do ser” é da face do dentro. Logo, comungamos do pensamento de Heidegger de que a fala é do âmbito do íntimo. Falar é, por si mesmo, escutar. Falar é escutar a linguagem que falamos. Torna-se escuta: “O falar não é ao mesmo tempo mas antes uma escuta. […] Falamos a partir da linguagem” (idem) porque lhe pertencemos. Aquilo que o Dasein comunica e expressa tem um referencial, o que é especificamente falado sobre o que se fala. Desse modo, articulando o sentido a partir da interpretação, falando algo sobre algo, comunicando e anunciando, o Dasein fala e ratifica a estrutura ontológica da linguagem que, nesse contexto do pensamento, manteve-se como possibilidade de um ente específico. E há nisto, a solidão, como explica na referida obra:
Linguagem é, no entanto, monólogo. lsso diz duas coisas: que só a linguagem é o que propriamente fala e que a linguagem fala solitariamente. Solitário pode apenas ser quem não é sozinho’ não sozinho, quer dizer, não separado, não isolado, sem relação. Na solidão vigora a falta do que é comum como a referência que mais liga o solitário ao comunitário. […] O homem só é, porém, capaz de falar porque, escutando a saga do dizer, a escuta para, a partir dela, poder dizer uma palavra. (Heidegger, ibidem, p. 214)
Ninguém, efetivamente, fala por outro, sendo por isso um ato monologal e solitário da linguagem, operando-se numa situação de um alguém não sozinho, o que não implica obrigatoriamente a presença de comuns. “Na sua saga, o dizer concede o “é” na liberdade clara e ao mesmo tempo velada de sua possibilidade de ser pensada” (ibidem, p. 171).
Falar é um reiterar do pensamento, um escavar de sentido, no sentido, e nesse ritmo criar aberturas por onde a luz entra aos poucos, mais ou menos diametralmente. Mas é também a assunção da caverna.
3. O regresso à caverna
O VII Livro de A República, segue a estrutura dialogal da obra de Platão e encontramos Sócrates a pretender pensar com Glauco, a formação do homem (paideia) através de uma imagem: homens presos no interior de uma caverna desde a nascença de onde viam apenas a parede ao fundo onde se projetavam sombras das formas dos homens, dos animais e coisas. O caminho de saída para a realidade exterior, encontrava-se por trás da caverna, pelo que nunca era visto, os “prisioneiros” apenas olhavam para a frente. A um desses prisioneiros é concedida liberdade Assim, seguindo com a leitura heideggeriana do Mito, podemos ver que, à medida que o homem é libertado, começa uma progressiva manifestação das coisas no que elas são. E somente porque as coisas assim se mostram, o homem tem a oportunidade de compreendê-las e de adaptar-se a elas. Deste modo, o desvelamento das coisas resulta na progressiva reorientação do homem em direção ao mais verdadeiro. A palavra grega para se referir ao desvelamento, segundo Heidegger, é alétheia, a verdade que passou a ser entendida pelo ocidente como adequação entre a coisa e o intelecto.
A mudança na compreensão da alétheia, de desvelamento para a exatidão da adequação, estaria relacionada com a mudança da própria essência da verdade.
Indaga-se se no entanto, se a fala não constitui também um ato caminhante, na medida em que pensamento e verbalização oral compreendem momentos distintos do ser, sendo na verbalização e consequente escuta que o pensamento pode permanecer ou alterar-se. Falar é um sair de si, implica uma constante reorientação do eu em direção ao mais verdadeiro do seu pensamento. Talvez não seja tão à toa o aforismo “da discussão nasce a luz”. A dialética é isso, permitindo-nos construir a ponte científico-racional que transporta do “antro das trevas” ao “foco de luz”, ao sol, que nutre tudo o que é vivo e que constitui alimento físico e psíquico. A dialética é uma via para a plenitude e para o Bem. A fala escava-se em direção à luz, como o ato agrícola, como a filosofia:
É às pessoas moderadas e firmes por natureza que se dará acesso à dialéctica, […] Para aprender a dialéctica, basta permanecer com continuidade e aplicação, sem fazer mais nada, por analogia com os exercícios de ginástica que diziam respeito ao corpo […] Depois disso, deves mandá-los descer novamente à tal caverna […] Quando tiverem cinquenta anos, os que sobreviverem e se tiverem evidenciado, em tudo e de toda a maneira, no trabalho e na ciência, deverão ser já levados até ao limite, e forçados a inclinar a luz radiosa da alma para a contemplação do Ser que dá luz a todas as coisas. Depois de terem visto o bem em si, usá-lo-ão como paradigma, para ordenar a cidade, os particulares e a si mesmos, cada um por sua vez, para o resto da vida, mas consagrando a maior parte dela à filosofia (Platão, pp. 357-358)
Deste modo, é possível que a luz referida na alegoria platónica (mais tarde derivando para o entendimento latino cristão em dia e de dia, deus) se refira à dialética, à razão não esquecida pelo poeta e perseguida pelo filósofo, mais do que exterior, Natureza, uma vez que a Natureza, lá fora, no que concerne à vida, não serve, em nada, de modelo moral para o homem. Viegas Guerreiro, no entanto, ao referir-se nos seus estudos sobre tribos angolanas compara a solidão da Natureza à liberdade absoluta: “E não é compensação de pouco preço a liberdade absoluta que uma sociedade, diferente de todas, pode buscar nessa imensa solidão da Natureza” (Guerreiro, 1968, p. 34). Uma visão estoica? É possível, mas também uma postura egoísta, no sentido de posse das aptidões para ser e estar no mundo: egoísmo sábio, mas indubitavelmente solitário.