Manuel Viegas Guerreiro e o estudo «Os Judeus na História de Portugal»
POR JOSÉ ALBERTO RODRIGUES DA SILVA TAVIM
Convidou-me amavelmente a Fundação Manuel Viegas Guerreiro, no intuito de divulgar a produção científica do autor, para comentar a separata Os Judeus na História de Portugal, que corresponde ao artigo que lhe foi incumbido sobre “Judeus”, publicado no volume III do famoso Dicionário de História de Portugal, dirigido por Joel Serrão [1].
A leitura atenta desta síntese revela antes de mais um conhecimento bastante actualizado, para a época, das investigações realizadas sobre o tema. Estão patentes na bibliografia J. Lúcio de Azevedo, e a sua História dos Cristãos-Novos Portugueses [2], e os espanhóis Julio Caro Baroja, com os seus três tomos acerca de Los Judíos en la España Moderna y Contemporânea [3], e José Amador de los Rios, com a sua Historia Social, Politica y Religiosa de los Judios de España y Portugal [4], ambos com vastas referências aos judeus e cristãos-novos de Portugal. Não falta também o recurso às fontes publicadas, como as da Monumenta Historica, as Ordenações Régias, os cronistas portugueses e o texto famoso de Samuel Usque, Consolação às Tribulações de Israel. Também recorre aos grandes clássicos da Historiografia Portuguesa, como Alexandre Herculano e a sua História da Inquisição [5], ou à obra matricial do professor Joaquim Mendes dos Remédios, Os judeus em Portugal [6]. O seu intuito de obter informação actual leva-o à leitura da dissertação de Licenciatura em História de Aida das Neves Faria, Análise Sócio-Económica das Comunidades Judaicas Portuguesas (1439-1496), de 1963. O seu interesse pelas fontes materiais como documentos produzidos pelas comunidades judaicas leva-o ao conhecimento do entusiasta Samuel Schwarz, nas suas Inscrições Hebraicas em Portugal [7]. O etnólogo e antropólogo seduz-se pelas recolhas do Abade de Baçal, padre Francisco Manuel Alves, que nas suas Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança consagra um volume aos Judeus [8]. Mas como seria lógico, encimando toda a bibliografia de referência, vem a obra do mestre José Leite de Vasconcelos, Etnografia Portuguesa, editada em Lisboa.
Foi sem dúvida o trabalho de edição desta obra do seu mestre que o levou, no volume IV, onde existe um vasto estudo sobre os judeus em Portugal, a aprofundar o conhecimento sobre esta matéria, espelhado já no artigo sobre o qual aqui nos pronunciamos. Orlando Ribeiro na “Notícia Introdutória” de 1956, ao volume IV da Etnografia, menciona que há cerca de dois anos que Manuel Viegas Guerreiro trabalhava como bolseiro no Centro de Estudos Geográficos, com o objectivo de editar a obra de Vasconcelos [9]. Na verdade, no enorme capítulo 1, da Parte II do referido volume, designado “Grupos étnicos” – verificamos o profissionalismo de Manuel Viegas Guerreiro para colectar dados que ao mesmo tempo suportam, contextualizam e actualizam os dados recolhidos por Vasconcelos [10].
Se compararmos o mencionado trabalho de Viegas no volume IV da Etnografia com o artigo publicado no Dicionário de História de Portugal (e também em separata) verificamos que o autor, face à necessidade de economizar a informação, decidiu quase limitar-se à cronologia histórica que vai desde os primeiros vestígios hebraicos no território português até às consequências do estabelecimento da Inquisição no reino, com uma menção muito sumária à entrada de judeus em Portugal no século XX, enveredando assim por uma das sínteses mais brilhantes que se escreveram sobre o assunto, tal é a sua actualidade. O facto de eleger estas balizas históricas deve-se provavelmente ao facto de compreender que havia necessidade dessa visão de síntese, depois dos estudos exaustivos e detalhados dos autores em que se baseia, e da sua leitura de fontes impressas. Isso significa que toda a informação habilmente reunida sobre os tempos modernos – sobretudo a produção de Samuel Schwarz e do Abade de Baçal e outros – foi preterida no Dicionário de História de Portugal, talvez porque tinha consciência das “novidades” dificilmente sintetizáveis desses autores, ou de ser uma informação menos compatível com um Dicionário de História de Portugal.
O seu estudo começa com a referência às lápides de Espiche, como primeiro vestígio – material – da presença judaica no território que será português; continua com uma análise da presença judaica durante a primeira dinastia, elucidando sobre matérias importantes de teor administrativo e institucional, como a constituição de uma comuna, os cargos governativos dentro desta, a carga tributária a que os judeus estavam sujeitos em troca da protecção régia; dos motivos da sua dedicação a actividades em que se privilegiava a propriedade imobiliária, e das consequências xenófobas do exercício de algumas actividades como a usura e o arrendamento da cobrança dos impostos devidos a reis, nobres, e até à Igreja. Muito interessante é o facto de tomar consciência de fenómenos de aculturação e de clivagem social dentro das comunas, assim como do discurso antijudaico perpetrado em crescendo pela Igreja, que levou à imposição do uso de um sinal distintivo. Informa igualmente sobre irrupções sociais contra os judeus, em que se destaca o ataque à Judiaria Grande de Lisboa, em 1449. Depois da conjuntura das expulsões peninsulares e o fenómeno do baptismo forçado, em finais do século XV, que deram origem a um extenso grupo de cristãos-novos, menciona também a vinda de judeus de Marrocos e Gibraltar, na primeira década do século XX. O autor termina o artigo com uma reflexão filosófica sobre a crispação entre cristãos e judeus na Idade Média, devido a móbeis de teor sócio-económico, ideológico e religioso, atestando, contudo, que em Portugal eles “viveram com relativa tranquilidade”.
A grande inovação em relação ao conhecimento dos judeus na Idade Média em Portugal dá-se com a publicação, mais tarde, dos trabalhos metódicos de investigação documental e revisão bibliográfica a cargo da professora Maria José Pimenta Ferro Tavares, sobretudo das suas obras Os judeus em Portugal no século XIV (1979) [11]; e Os judeus em Portugal no século XV (1982-1984) [12]. Mas tal não retira, como já mencionámos, o grande valor à síntese de Manuel Viegas Guerreiro.