O Cristóvão Colombo de Manuel Viegas Guerreiro
POR RUI LOUREIRO
Um dos muitos assuntos que suscitou a sempre viva curiosidade de Manuel Viegas Guerreiro (MVG), a partir de data que não consigo determinar, foi a ligação de Cristóvão Colombo a Portugal. Esse interesse despontou por razões ligadas à Etnografia, o seu campo essencial de formação e de actividade, pois o navegador genovês celebrizou-se justamente por ter sido o primeiro a desvendar o caminho marítimo para a América e o primeiro a descrever os habitantes deste novo mundo anteriormente desconhecido dos europeus. MVG abordara antes a célebre carta de Pêro Vaz de Caminha, primeira descrição europeia dos ameríndios do Brasil[1], de modo que a ideia de confrontar o testemunho do observador português com os escritos de Colombo terá surgido de uma forma lógica. De qualquer maneira, o interesse de MVG – enquanto leitor, investigador e divulgador – por Colombo terá crescido exponencialmente com a aproximação do ano de 1992, quando se comemoraria o quinto centenário da famosa viagem de descobrimento colombina.
Por esses anos, eu mantinha uma ligação de colaboração com a Comissão Municipal dos Descobrimentos em Lagos (CMD), a qual, com o apoio da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, dinamizava um ambicioso programa de actividades, que incluía nomeadamente a realização de colóquios científicos e a publicação das respectivas actas. A CMD pretendia relembrar devidamente a viagem de Colombo, pelo que se iniciaram contactos com diversos investigadores ligados à temática dos Descobrimentos. Creio que terá sido Luís Filipe Barreto a sugerir-me o nome de Manuel Viegas Guerreiro, juntamente com o de António Borges Coelho, para integrarem a comissão científica que desde logo se constituiu. O Seminário «Cristóvão Colombo, a América e os Portugueses» teve efectivamente lugar em Lagos, em Outubro de 1992 (precisamente 500 anos depois da viagem colombina), sob a direcção de MVG, reunindo um alargado conjunto de investigadores, incluindo aqueles que eram na altura os grandes especialistas em Colombo, a nível mundial, os espanhóis Consuelo Varela e Juan Gil, autores de obras que ainda hoje são referenciais[2]. Por uma curiosa casualidade, eu próprio tinha há pouco travado conhecimento com Consuelo Varela, e estabeleci o contacto com ela e com o marido, Juan Gil, que a partir de então foram presença constante em muitas das reuniões científicas organizadas em Portugal em torno dos Descobrimentos.
Penso que MVG terá ficado inteiramente satisfeito com os resultados do colóquio de Lagos, tanto a nível de comunicações apresentadas, como em termos de impacto público. Ele próprio apresentou uma comunicação sobre «Cartas sobre o achamento das Antilhas», na qual abordava os primeiros escritos de Colombo sobre o Novo Mundo, confrontando-os precisamente com passagens da missiva escrita ao monarca lusitano por Pêro Vaz de Caminha. Esta comunicação foi depois integrada nas actas do colóquio, publicadas pouco depois pela CMD[3], e nela MVG sublinhava desde logo a importância fundamental do período de cerca de dez anos passado por Colombo em Portugal para a sua formação como navegador oceânico (c.1474 a c.1484). Nas suas palavras, a viagem colombina de 1492 fora uma «navegação sábia e audaciosa de um genovês, que do Mediterrâneo se passa a Portugal para aprender com Portugueses a ciência de descobrir»[4]. Ou seja, MVG tomava posição inequívoca em duas das mais controversas questões que rodeavam a história de Cristóvão Colombo: por um lado, afirmava sem dúvidas a sua naturalidade genovesa, contra teorias então em voga sobre o alegado ‘Colombo português’; por outro lado, destacava a aprendizagem de navegação no Atlântico que o genovês fizera em navios portugueses de longo curso, durante uma década, em viagens para os arquipélagos da Madeira e dos Açores, e também para a costa ocidental de África.
Durante a preparação do colóquio lacobrigense, MVG tentara obter em Lagos apoio para a reedição da primeira tradução portuguesa do diário de bordo da primeira viagem de Colombo, que fora realizada por Francisco Fernandes Lopes e publicada no jornal República, entre 3 de Agosto de 1938 e 15 de Março de 1939. Para o efeito, cedera-me fotocópias das páginas do jornal que continham a referida tradução[5]; mas não foi possível, por então, dar andamento a esse projecto. Mas o interesse de MVG pelas questões colombinas manteve-se activo, e resultou em duas outras publicações que valerá a pena destacar.
Ainda com data de 1992, e resultando decerto de trabalho de investigação desenvolvido anteriormente, MVG publicou em edição de autor a chamada Carta do achamento das Antilhas, escrita por Cristóvão Colombo em 1493, já depois do descobrimento do Novo Mundo, durante a viagem de regresso à Europa, e dirigida a Luis de Santángel[6]. Este último era então escribano de rácion (responsável pelas finanças) dos monarcas espanhóis Fernando e Isabel, e fora um dos apoiantes e financiadores do projecto colombino de encontrar uma rota marítima ocidental para as Índias. O reconhecimento do navegador genovês por este apoio é evidente, pois a primeira notícia que escreve sobre o descobrimento do Novo Mundo é precisamente dirigida a Santángel. Esta carta, um folheto de quatro páginas, foi publicada em Barcelona logo em Abril de 1493, sendo pois o primeiro impresso que documenta o descobrimento do continente que mais tarde viria a ser conhecido como América. MVG publicou o fac-símile deste raríssimo impresso (pp. 51-54), acompanhado de uma transcrição do original (pp. 55-61) e de uma tradução em português (pp. 63-73), cuidadosamente anotada. A obra era complementada por uma longa biografia de Cristóvão Colombo (pp. 7-48), que revelava um apurado conhecimento da mais importante bibliografia colombina, tanto a nível de fontes como em termos de estudos, e que destacava a crucial importância do período passado em Portugal para a formação náutica e geográfica do navegador genovês. Trata-se de um estudo e de uma edição modelares, que ainda hoje se lerão com proveito, cujo propósito essencial era apresentar pela primeira vez em língua portuguesa um documento fundamental para a história do descobrimento do Novo Mundo, dotado de um amplo aparelho crítico e contextualizante.
Provavelmente ainda em 1992, ou em princípios do ano seguinte, MVG completou um outro livro sobre Colombo, com propósitos algo diferentes, e que viria a ser publicado com o título Colombo e Portugal, em 1994[7]. As primeiras palavras desta obra são reveladoras: «Pouco se sabe de Colombo em Portugal. Como entender isso, já que, em boa parte, seu afortunado sucesso nos pertence?». Ou seja, um propósito eminentemente didáctico orientava esta publicação, a saber, destacar, através de um hábil manuseamento das fontes existentes, a extraordinária importância de Portugal e dos portugueses nos feitos náuticos de Colombo. A obra Colombo e Portugal começava por buscar na documentação referente ao genovês os traços da sua ligação a Portugal (pp. 11-32), deste indícios auto-biográficos nos escritos colombinos até testemunhos dos seus contemporâneos, passando pelas narrativas de cronistas e biógrafos posteriores. Esta secção inicial, muito rigorosa e documentada, era seguida por uma outra que recolhia, de entre os autógrafos e apógrafos colombinos, todas as passagens referentes a Portugal (pp. 33-70). Enfim, a secção final reunia os testemunhos sobre Colombo transmitidos por três cronistas portugueses activos nos séculos XV e XVI, a saber, Rui de Pina, Garcia de Resende e João de Barros (pp. 71-84), dos quais os dois primeiros se terão em algum momento cruzado com o navegador genovês.
Embora etnógrafo de formação, MVG, com estas publicações sobre Colombo, cumpria devidamente a dupla função de historiador e de pedagogo, ambas com igual rigor e entusiasmo. Talvez tenham sido esses os dois traços essenciais do seu labor enquanto investigador, aliar a exigência científica a uma atitude eminentemente pedagógica. Pois, para que serve o conhecimento especializado, se não fôr devidamente difundido? MVG deu um contributo essencial ao conhecimento das relações históricas entre Cristóvão Colombo e Portugal, e as suas investigações e publicações continuam actualizadas e a fazer sentido, perante o obsessivo retorno da fantasiosa tese de um ‘Colombo português’, que ainda há pouco mereceu as críticas acertadas de um historiador do calibre de Luís Filipe Thomaz[8], que, ao que parece, prepara obra de maior fôlego sobre o assunto, comprovando que a ligação de Colombo a Portugal, como bem anteviu MVG, continua a ser tema de extrema actualidade.