Autonomia, Integração, Transição: Lições de uma arguição que não existiu
POR JOÃO FERRÃO
Imaginemos umas provas de doutoramento em que uma jovem antropóloga americana de 28 anos apresenta, com entusiasmo e convicção, os resultados do trabalho de campo realizado numa aldeia localizada a 40 quilómetros de Lisboa, de seu nome S. João das Lampas. Essa apresentação suscita um conjunto de comentários serenos e ponderados por parte de um dos elementos do júri, um etnógrafo português de 52 anos. O contraste entre estes dois perfis tão distintos em origem geográfica e idade – e, portanto, em referências e vivências – é o pano de fundo que permite decifrar o diálogo que se irá estabelecer entre ambos.
Esse contraste é tanto mais relevante quanto o momento das provas – meados dos anos 1960 – corresponde a um período de profundas transições que afetam a etnografia, a ciência e a sociedade portuguesas: o interesse pelo estudo de populações ditas primitivas vai sendo substituído pela atenção dada a pequenas comunidades rurais nacionais, as teorias funcionalistas são alvo de fortes críticas por parte dos defensores das perspetivas estruturalistas então em emergência, e as comunidades rurais tradicionais perdem muitos dos seus traços seculares como consequência do avanço, tardio mas imparável, do processo de modernização urbano-industrial do país. É este enquadramento que torna fascinante a leitura do texto que Manuel Viegas Guerreiro[1] dedicou à tese de doutoramento de Joyce Firstenberg Riegelhaupt sobre S. João das Lampas[2], publicado na revista Finisterra em 1974, isto é, 10 anos após a apresentação da referida tese.
Na verdade, Manuel Viegas Guerreiro não fez parte do júri que apreciou o trabalho da jovem antropóloga americana. Mas o modo como organizou aquilo que poderemos considerar como uma recensão crítica do trabalho de Joyce Riegelhaupt sobre a aldeia saloia onde esta viveu durante quase um ano sugere a imagem inicial deste texto: às palavras da autora (em rigor, à síntese que Manuel Viegas Guerreiro vai fazendo de cada um dos capítulos da tese) responde o etnógrafo português com elogios, correções, dúvidas ou desacordos, salientando aspetos inovadores, apontando inexatidões e erros factuais, questionando o que lhe parecem ser leituras simplistas ou generalizações exageradas, complementando dados ou sugerindo reformulações e reinterpretações.
A autora parte de um pressuposto claro, decorrente do modelo teórico do antropólogo, também americano, Robert Redfield: a modernização das comunidades camponesas depende da maior ou menor proximidade a um centro urbano e dos consequentes contactos que se estabelecem entre ambas as realidades. A partir deste pressuposto, é formulada a questão de investigação: até que ponto a proximidade de S. João das Lampas a Lisboa influenciou a integração desta comunidade camponesa na sociedade em geral?
Os resultados das análises efetuadas pela autora levam-na a rejeitar o pressuposto de partida e a defender que a modernização da comunidade de S. João das Lampas se deve sobretudo à crescente influência exercida por instituições económicas, políticas e religiosas de âmbito nacional através de processos que não exigem a proximidade de um centro urbano, neste caso, Lisboa. Esta conclusão é particularmente interessante para a área em estudo, na medida em que S. João das Lampas constituiria, à partida, um exemplo favorável à validação da tese inicial, dada a forma duradoura como esta comunidade abasteceu a capital de produtos agrícolas (pão, ovos, manteiga, pequenas aves, batatas, cebolas, etc.), sugerindo uma exposição significativa a influências “de aculturação” modernizadora urbana com base nos contactos estabelecidos.
Para sustentar as suas conclusões, Joyce Riegelhaupt salienta como a vida da pequena comunidade rural vai sendo sucessivamente dominada por instituições (entidades, legislação, procedimentos de controlo, fiscalização e policiamento) que implicam a sujeição a poderes e regras nacionais ao nível económico (p.e., obrigatoriedade de inscrição no Grémio da Lavoura ou de venda da produção de trigo à Federação Nacional dos Produtores e Trigo), político (dependência do Regedor e da Junta de Paróquia de representantes do Governo e do partido único, a União Nacional) e religioso (intervenções do pároco a favor da aplicação das orientações sociopolíticas da Igreja em detrimento de práticas coletivas locais). Em suma, e segundo a autora, a modernização da comunidade rural de S. João das Lampas deve-se mais à influência das instituições nacionais, em particular à organização corporativa do Estado, num contexto de transição de uma sociedade pré-industrial para uma sociedade industrial, do que aos contactos físicos estabelecidos regularmente com a principal cidade do país como centro agrícola abastecedor deste importante centro de consumo urbano. Poderemos então afirmar, recorrendo a outras palavras, que, segundo a autora, a modernização e a crescente “urbanização” de um meio rural como S. João das Lampas se fizeram sobretudo por imposição e absorção (integração pela sociedade nacional), e não tanto através do reforço de interações cidade-campo de natureza assimétrica (integração por contaminação ou contágio urbano).
Manuel Viegas Guerreiro subscreve mais as análises desenvolvidas pela autora do que as suas conclusões. Afirma, aliás, que seria conveniente “atenuar a excessiva força que [Joyce Riegelhaupt] imprimiu às premissas de que parte” (p. 159) e sugere, até, que a autora aplicou um “modelo pré-definido”. Parece depreender-se das suas observações que, por razões teóricas ou outras, a antropóloga empola e simplifica o processo de modernização da comunidade rural estudada. Por isso, Manuel Viegas Guerreiro salienta que a autora desvaloriza a persistência de traços tradicionais; que o desenvolvimento de circuitos de produção informais à margem das instituições e suas regras permite a manutenção de uma certa autonomia à comunidade local; que a proximidade de Lisboa e os contactos que com ela são estabelecidos não só se mantêm como se reforçam indiretamente (por exemplo, trabalho dos homens da aldeia na construção de casas de veraneio de proprietários urbanos), pelo que a cidade permanece um importante foco de transformação cultural; que o papel das instituições formais (políticas, económicas e religiosas), sendo relevante, não eliminou as diferenças entre a sociedade local e a sociedade nacional.
Antes de redigir este artigo publicado em 1974 na revista Finisterra, Manuel Viegas Guerreiro deslocou-se a S. João das Lampas para confrontar a comunidade rural descrita pela antropóloga americana dez anos antes com o que as populações locais lhe diziam e o que as paisagens observadas lhe sugeriam. Se fizermos o mesmo hoje, quase cinco décadas mais tarde, o que encontramos? E que aprendemos com este diálogo que Manuel Viegas Guerreiro estabelece com Joyce Riegelhaupt através dos seus comentários à tese de doutoramento da jovem antropóloga?
As mudanças entretanto ocorridas em S. João das Lampas foram tantas que não as podemos entender sem recorrer a expressões que à época nem existiam: metropolização, globalização, financeirização, governança territorial e governança multinível, etc. Mas há três aspetos presentes no texto em análise que, pela sua intemporalidade, importa identificar e salientar. Por um lado, a centralidade analítica da tensão entre autonomia (que não autarcia) e integração (que não subordinação). Por outro, o conceito de transição, de transformação que inevitavelmente acarreta ganhadores e perdedores. Finalmente, a importância da pluralidade analítica e da controvérsia científica. Lido quase 50 anos mais tarde, este texto de Manuel Viegas Guerreiro permite que lhe devolvamos o elogio que então fez a Joyce Riegelhaupt: “A autora observou com rigor, descreveu com minúcia, reflectiu com finura” (p. 159). Tinha, por isso, razão nas suas conclusões? Talvez não seja essa a questão que importa formular. Contribuiu para um melhor conhecimento dos processos de modernização e transformação de uma comunidade (rural) crescentemente exposta a fatores externos? Esta sim, é a pergunta que devemos colocar e que se manterá em aberto e pertinente em qualquer período e para qualquer comunidade. É esta mensagem de abertura dialógica que Manuel Viegas Guerreiro, com as suas observações e sugestões, nos transmite permanentemente ao longo das cerca de 20 páginas que nos deixou a propósito da tese de doutoramento de uma jovem antropóloga americana que durante um ano veio até Portugal para estudar uma sossegada pequena comunidade rural saloia “à sombra da cidade”.