Sobre a autoria da Etnografia Portuguesa, de Leite de Vasconcelos
POR IVO CASTRO
Quem contemplar de fora os dez grossos volumes da Etnografia Portuguesa, ou examinar a sua referência nos catálogos ou na internet, pode facilmente acreditar nos dizeres da capa: que se trata de uma obra da autoria de José Leite de Vasconcelos, por isto se entendendo uma obra que o grande sábio concebeu, pesquisou, redigiu e publicou.
Mas quem abrir qualquer dos seus volumes e ler as Prefações que todos trazem notará que, a partir do volume IV, quem assina esses textos é Orlando Ribeiro e que esses volumes não foram publicados pelo Dr. Leite, sendo posteriores à sua morte (1941), nem foram por ele redigidos, salvo em algumas passagens, nem resultam de pesquisas por ele exclusivamente conduzidas, nem, finalmente, cumprem à risca o plano geral por ele concebido. Feitas as contas, verificará que dois terços dessa obra de coroamento de carreira foram realizados postumamente ao longo de décadas, com abnegado esforço, por um colectivo de discípulos do Dr. Leite, que culminaram a homenagem assim prestada ao mestre deixando que o nome deste permanecesse no lugar do autor. Foram eles Orlando Ribeiro, Manuel Viegas Guerreiro, Alda e Paulo Soromenho: Ribeiro superintendeu e prefaciou, Guerreiro organizou as tarefas, seleccionou para inclusão os materiais reunidos pelo Dr. Leite, investigou por sua conta e risco o que faltava e redigiu volumes inteiros ou grandes partes deles, sendo assistido nestas tarefas criativas pelo casal Soromenho, cuja mão mais se faz sentir nos últimos volumes. Não seria despropositado, portanto, tratá-los de acordo com os seus vários graus de responsabilidade como co-autores da Etnografia Portuguesa.
Não quer isto dizer que seja impróprio concentrar no Dr. Leite a autoria da obra. Abundam exemplos históricos da prática de atribuir ao criador inicial, sobretudo quando é um grande vulto cultural, a autoria de uma obra que não acabou e teve de ser completada por continuadores discretos e quase anónimos. Quem sabe o nome do finalizador do Requiem de Mozart? Não é impróprio, mas é decerto insuficiente e convida a que mais detidamente se aprecie o grau e a qualidade da intervenção que os continuadores tiveram e se proceda a uma mais equitativa redistribuição dos seus méritos. No caso da Etnografia Portuguesa, isso terá como consequência principal a revalorização do papel desempenhado por Manuel Viegas Guerreiro.
Os dados disponíveis para tal reapreciação pertencem a duas categorias: a) informações dos próprios continuadores (prefações de Orlando Ribeiro, textos evocativos dos restantes participantes, testemunhos orais); b) materiais de espólio que revelam quem escreveu o quê, e a partir de que materiais. Vejamos o que nos ensinam estas fontes, tomando como objecto de análise os vols. IV e V da Etnografia.
O vol. IV, publicado em 1958, contém alguns capítulos ainda escritos pelo Dr. Leite, que inclusive reviu provas tipográficas: após a sua morte em 1941, o volume estacionou durante muitos anos até que, por feliz impulsão de O. Ribeiro, se reuniram condições para a equipa de continuadores iniciar os trabalhos. Foi Manuel Viegas Guerreiro quem redigiu o resto do vol. IV, como explica O. Ribeiro: «O volume que ora se publica deve-se, pela maior parte, ao cuidado de Manuel Viegas Guerreiro. As partes I («Origem do Povo Português») e III («Resenha da População no Decurso do Tempo») ficaram inteiramente acabadas em tempo do Mestre…» (EP, IV, p. xxiii). Este vol. IV tem, portanto, um estatuto duplo quanto a autoria: em parte é do Dr. Leite (71 pgs.), mas na sua maior parte não o é (as restantes 560 pgs.).
Assim, o vol. V, publicado em 1967, é o primeiro inteiramente póstumo. Como conta O. Ribeiro (EP, V, p. ix-x), Viegas Guerreiro encarregou-se da «organização geral da obra» e especialmente da parte I, «Nascimento e infância» (p. 7-107), e na parte II do cap. «Vida Rural» (p. 525-675).
Viegas Guerreiro descreve estes seus esforços em termos coincidentes: para que não ficasse «por aproveitar a fabulosa documentação» deixada pelo Dr. Leite, ele, Guerreiro, ocupou-se «da organização e publicação do referido espólio», trabalhando sob «vigilância e conselho» de O. Ribeiro. «Saiu assim o 4º volume». E prossegue: «Para comigo trabalharem em tão pesada tarefa chamei outros discípulos do Mestre, Paulo Soromenho (†) e sua mulher Alda Soromenho. Desta oficina e sob minha orientação saíram do 5º ao 9º volume e está a sair do prelo o 10º e último. O trabalho maior com a preparação dos volumes do 5º ao 9º deve-se aos mencionados colaboradores, à sua dedicação, zelo e competência; no 10º foi mais activa minha intervenção» (Viegas Guerreiro, Finisterra, XXIV, 1989, p. 135-6).
Conservam-se na Biblioteca da Faculdade de Letras de Lisboa os materiais leitianos que foram utilizados na preparação dos volumes 4º a 10ª da Etnografia, bem como aqueles que os continuadores da obra geraram. O exame desses materiais permite não só confirmar as descrições de Orlando Ribeiro e de Viegas Guerreiro, como perceber com algum detalhe o modo como o trabalho foi realizado e como se acha distribuída a responsabilidade autoral.
Sirva de exemplo o longo capítulo da Vida Rural (vol. V, p. 525-675), que vimos ser atribuído a Viegas Guerreiro. A caixa A17 do espólio da FLUL é ocupada totalmente por um conjunto de folhas de papel de várias dimensões, mas organizadas em série e numeradas continuamente de 1 a 270, integralmente escritas pela mão de Viegas Guerreiro. Como o texto deste conjunto coincide exactamente com o capítulo publicado no vol. V, e como abundam indicações de natureza tipográfica ao longo dele, pode ser classificado como o original de imprensa dessa parte do volume, saído das mãos de Guerreiro para as de um tipógrafo da Imprensa Nacional, que o converteu em folhas de livro.
Esperar-se-ia que este original destinado à imprensa fosse uma cópia limpa, mesmo que se destinasse a tipógrafos que estavam habituados a decifrar os manuscritos labirínticos do Dr. Leite. Mas numerosas emendas de redacção e de informação mostram que Viegas Guerreiro ainda nesta fase estava a compor e construir o seu texto; é frequente colar abaixo da folha, ou ao lado, tiras de papel em que acrescenta nova informação. Esta técnica de expandir o texto, que aprendeu com o Dr. Leite, reforça o papel de Viegas Guerreiro como responsável indiscutível pelas fases finais da redacção.
Adivinha-se, no entanto, que ele tinha à sua frente outros textos, que em parte copiava, em parte reformulava, em parte mesmo reciclava. Reciclagem ocorre no caso dos poemas que se podem ler nas p. 629-631 do vol. V: Viegas Guerreiro, em vez de os copiar pela sua letra, limitou-se a colar nas suas folhas uma série de manuscritos do Dr. Leite, assim abreviando a tarefa e evitando erros de cópia. Esta técnica de inserir na redacção final papéis redigidos ou escolhidos por Leite sugere, logicamente, que esses materiais autógrafos não se prestavam a uma organização textual contínua, pois eram dispersos e raros. Não havia um original leitiano anterior e eles precisavam de ser afixados na redacção final saída das mãos de Guerreiro, ou de um dos Soromenhos.
Ao passo que estes afloramentos de texto leitiano são fáceis de identificar, bastando folhear as folhas em que Guerreiro os colou, outros existem de detecção mais subtil, mas igualmente reveladores do cuidado de Viegas Guerreiro em aproveitar ao máximo os materiais do Dr. Leite. A caixa C01, envelope 04, do espólio da FLUL contém materiais leitianos autógrafos, geralmente pedaços de papel com anotações rápidas, facilmente negligenciáveis. Mas chamam a atenção porque se acham reunidos em pequenos maços, que foram organizados por Viegas Guerreiro e por sua mão intitulados com letreiros como «Nomenclatura. Para consultar se fizer falta», ou como «Sugestões várias para o plano». Um desses maços contém uma ou duas dezenas de papéis, todos rotulados por Leite «Viver primitivo», que se verifica terem sido aproveitados por Guerreiro para a redacção da p. 158 («Alimentação primitiva com animais»). Nessa página se reconhecem, integrados numa redacção contínua (de Guerreiro), ecos desses pequenos segmentos soltos de Leite. Exs.:
a) «Os pobres em Cabanas da Conceição (Tavira) comem amêijoas cruas. A rapazes as vi eu comer em 1894 apanhadas da agoa.»
b) «Abrir as ameijoas. Fazem um circulo de ameijoas, com 0,50m ou mais de ameijoas, conforme o nº d’elas: fica o chão calcetado de ameijoas vivas. Fazem uma fogueira em cima com xaramuga (no povo xeramusga), arbusto que seca e serve para arder. Depois comem-nas à roda, bebendo vinho. Pela Pascoa e S. João. Olhão».
Exemplos como estes poderiam multiplicar-se, mas bastam para sugerir que mesmo os volumes póstumos da Etnografia Portuguesa conservam informações, documentos e iconografia, cuja recolha e classificação se devem ao Dr. Leite. Esses pedaços do real foram vistos, escolhidos e tidos em conta (ou não) por Viegas Guerreiro e seus colaboradores, a quem pertence ainda a responsabilidade pela angariação de muita informação complementar, pelos planos global e de pormenor (que se afastam do plano inicial de Leite) e, como vimos, pela redacção final da obra.
Sim, tendo em conta estas responsabilidades directas e também a supervisão dos outros colaboradores, a Manuel Viegas Guerreiro cabe a co-autoria da Etnografia Portuguesa.