Da provisoriedade da vida e da permanência da narrativa
POR JOÃO BAPTISTA M. VARGENS
Nos tempos atuais, em que os conceitos são cada vez mais questionados, a teoria da literatura não mais sustenta a pureza dos gêneros literários, assim como a genética não admite a pureza das raças. Então, em muitos casos, não se pode precisar a diferença entre o conto e a crônica. Poder-se-ia dizer um croniconto?
Da mesma forma, as narrativas orais, inicialmente transmissões ancestrais, ganharam a tinta e o papel, a internet, as traduções, e percorrem o mundo.
O texto analisado, Conto Maconde, foi produzido originalmente em maconde, língua de origem banta, uma das cerca de 20 línguas faladas em Moçambique, principalmente em Cabo Delgado, nos planaltos de Muidumbe e Mueda. Há, aproximadamente, 360 mil falantes, o que corresponde a 8,5% da população do País. M.Viegas Guerreiro recolheu a história e traduziu para o português. Ela foi publicada na Separata do Boletim da Sociedade de Estudos de Moçambique, vol.32, Lourenço Marques, Julho/Setembro, 1963.
O enredo versa sobre uma mulher que, desejosa em ter filhos, esculpiu um boneco de barro que, após uma semana dentro de uma panela, tornou-se uma linda jovem a quem nomeou Ncatapele, que significa “a que veio do barro”. A beleza da moça causou curiosidade, admiração e encantou a vizinhança.
Em busca de aproximação, as garotas do bairro convidaram-na para brincarem ao ar livre. Repentinamente, surgiram no céu nuvens carregadas e a chuva seria inevitável. Então, a mãe da moça de barro, advertiu-a pedindo que retornasse ao lar, repisando bordões intensificadores da ação: “Nactapele foge da chuva, foge,/Foge das nuvens, foge,/o teu pai vem aqui,foge,/Foge das nuvens”. Tais repetições remetem-nos à função do coro na tragédia clássica, um espectador privilegiado, responsável pelo equilíbrio das ações.
No dia seguinte a cena repetiu-se, entretanto a heroína não conseguiu safar-se. Foi surpreendida pela chuva copiosa e desfez-se sob os lamentos da progenitora.
No aludido “croniconto”, o narrador é um “griot”. Para imergir o ouvinte na história, apela a alguns recursos, como a repetição e a transposição dos discursos indireto, em terceira pessoa, e direto, passando a palavra à protagonista e, às coadjuvantes, a mãe e as companheiras. No final do texto, para conferir fidedignidade à narração, o autor apresenta-se: “Este conto contei eu Alicududa, filho de Chinmbiñavanga, o meu régulo é Machangano, o meu capitão-mor é Nancodia e o meu “licola” é Chiala e sou sobrinho de Nacatembo (a minha povoação é Nacatenmo)”.
Do barro criou-se o Homem. Não somente as três religiões dos Livros, monoteístas, Judaísmo, Cristianismo e Islamismo, comungam da citada assertiva, sobre a concepção do surgimento da espécie humana no universo. Os Maias admitem que Deus amalgamou barro e água e moldou o novo regente do planeta. Esta teria sido a décima-terceira e última etapa da gênesis. Na mitologia grega repete-se a composição: Prometeu molhou a argila com a água de um rio e esculpiu aquela massa dando-lhe forma humana. Atena, plena de sabedoria, com um sopro, deu ânimo àquele boneco e, assim, o espírito etéreo corporizou-se. No antigo Egito, na Nova Zelândia, na Babilônia e em outras terras, o mito da criação assemelha-se.
De retorno ao croniconto, nele pode-se constatar a provisoriedade da vida, efêmera, fugaz, limitada pelos terríveis tentáculos de Chronos. Em contrapartida, nota-se a permanência da narrativa, ilimitada, atemporal, onipresente, que confunde Chronos e perpetua-se pela palavra: escrita, contada, cantada, recitada ou dramatizada.
O eterno é a palavra.