O papel da Antropologia Social na execução de programas de desenvolvimento rural
POR ALBERTO MELO
Foi com muito gosto que acedi ao gentil convite da Fundação Manuel Viegas Guerreiro para comentar um dos trabalhos do seu patrono. Trata-se de um documento com o título acima enunciado, que ele escreveu a instâncias do amigo e colega Gomes Guerreiro e foi publicado, em Dezembro de 1974, pelo Instituto Universitário de Évora, no livro 1º Seminário Universitário de Évora, Extensão Rural.
Aqui, MVG manifesta uma vez mais a sua modéstia de sábio, ao alegar que pouco neste texto “vem exclusivamente de mim (se a alguma coisa podemos chamar nosso)”, afirmando que traz ao trabalho juízos de outros, que generosamente cita, e sobretudo de George Foster. Num texto que se destinava a futuros extensionistas rurais, para trabalharem no nosso país, MVG chama a atenção para o facto de se ter ocupado sobretudo de sociedades africanas, referindo no entanto que sempre “encontrou analogias culturais entre pequenas comunidades rurais em África e Europa”. E, com efeito, não será por acaso que, nos tempos de Portugal país colonizador, aqui existia, em paralelo com as administrações coloniais, uma Junta de Colonização Interna.
Tendo em conta o seu público, MVG apresenta neste sucinto documento (de 7 páginas) aquilo a que chama “princípios gerais e cautelas de que depende o êxito da execução de um plano de desenvolvimento rural”. Tendo eu próprio coordenado projectos de desenvolvimento em meio rural, entre 1985 e 1998, decidi na presente resenha “fazer-me aluno” do Mestre Viegas Guerreiro e reconstituir um diálogo, que nunca existiu (hélas!), entre as suas sábias e oportunas prescrições e algumas (muito poucas, dada a brevidade recomendada para este comentário) reminiscências do trabalho de terreno que então dirigi. Teremos, assim, em negrito e itálico as suas palavras, seguidas de breves referências minhas ao trabalho então realizado.
O extensionista terá de conhecer a cultura em que vai actuar. É necessário conhecer as condições socioculturais, e também as ecológicas, da comunidade onde se pretende trabalhar. Vai, em suma, actuar em uma pequena comunidade e há-de levar consigo prévio conhecimento das principais características deste tipo de sociedades.
Inicialmente no âmbito do Projecto RADIAL (Rede de Apoio ao Desenvolvimento Integrado no Algarve, em 4 freguesias do interior rural) e, em seguida, do ARRISCA (Acção de Revitalização Rural Integrada da Serra do Caldeirão – Alentejo, Algarve, que cobriu 31 freguesias), a intervenção da Associação In Loco (criada em 1988 e ainda hoje activa) adoptou desde sempre uma abordagem participativa. Primeiro, na análise das situações e na definição de eixos prioritários e, seguidamente, na execução das iniciativas decididas em comum, entre residentes e equipa técnica.
A descoberta das principais características da cultura local não foi objecto de um estudo prévio sobre as comunidades locais, mas decorreu de uma comunicação intensa com as próprias comunidades. Através de reuniões conjuntas, dos contactos quotidianos e de recolhas de história local, inventários de recursos endógenos e das mais relevantes expressões do património cultural (material e imaterial) decorreu a tomada mútua de conhecimento, frequentemente, no âmbito das múltiplas acções de formação então organizadas. Pode dizer-se que toda esta dinâmica representou um eficaz e enriquecedor processo educativo, em prol não só dos participantes locais como também de todos os membros da equipa.
MVG cita Possinger: “O homem do campo deve ser considerado sujeito e não objecto de uma política de desenvolvimento”. Devemos ir ter com ele, ouvi-lo, saber o que quer, como quer e para que quer, e não tomá-lo como coisa que vamos modelar à nossa vontade.
O trabalho iniciou-se, no Outono de 1985, com reuniões nas 4 freguesias seleccionadas (Alte, Cachopo, Martinlongo e Azinhal), para as quais toda a população foi convidada. Estas reuniões foram muito concorridas, atraindo entre 50 e 80 pessoas, que definiram os principais problemas locais, nomeadamente, a falta de apoio às crianças e a inexistência de empregos. A partir daqui, foram escolhidas 3 áreas de acção: criação de Centros de Animação Infantil, lançamento de cursos para o auto-emprego (com base em actividades artesanais e produtos locais) e constituição de associações de residentes. Em todas estas iniciativas, foram sempre as mulheres as mais interventivas e criativas, estando na origem das primeiras unidades produtivas então instaladas.
Outros preceitos gerais deverá o extensionista ter em conta. A noção, o elemento ou complexo cultural a transmitir hão-de ajustar-se aos ideais básicos da cultura receptora, hão-de poder tornar-se seus, estar de acordo com os seus valores. Nem sempre se recebe o que é útil, objectivamente vantajoso, e isto tem deixado em perplexidade, quando não em desespero, os trabalhadores impacientes de projectos de desenvolvimento. E vá de atribuírem a rejeição a estupidez ou preguiça ou generalizada incapacidade mental.
A resistência é um mecanismo de defesa cultural contra as influências vindas do exterior (…) Por irracional que pareça determinada prática ou técnica, ela é, muitas vezes, o fruto de longa experiência e tem a idade de séculos ou milénios. Há que a estudar, analisar, com cuidado e respeito, antes de emitir juízos definitivos.
A escolha de artesanatos, presentes na tradição local, responde fielmente a este preceito. Não se tratava então de inovar a 100% mas antes de aperfeiçoar actividades conhecidas e pertencentes à cultura local: tecelagem, malhas, confecção de roupa, doces e bolos, plantas aromáticas, construção de brinquedos e jogos de madeira. E, mais tarde, de melhorar a qualidade em restaurantes locais, alojamento rural, animação turística…
Perguntava-nos um Presidente de Junta, no início da intervenção, porque não procurávamos construir ali uma fábrica, que desse emprego a umas 50 pessoas, em vez desse nosso “trabalho miudinho”. Uns anos mais tarde, disse-nos que realmente reconhecia que já havia 50 ou mais pessoas empregadas na área serrana, graças ao tal “trabalho miudinho” assente em saberes e em produtos do território.
Não se há-de mudar tudo de repente, mas aos poucos para garantir assimilação sem distúrbios nem angústias. Haverá, naturalmente, que modificar valores tradicionais, substituir uns objectos por outros, mas proceda-se com o máximo cuidado, para evitar angústias excessivas.
Há que reconhecer que o tempo na intervenção em meio rural, tal como em todo o processo de natureza educativa, não é um custo, mas acima de tudo um investimento. Quanto mais tempo houver, mais duradouras e eficazes serão as aprendizagens realizadas e mais facilmente será possível gerir a transição entre os conhecimentos e competências já em posse dos participantes e as novas aquisições e necessárias inovações.
Assim, no curso de tecelagem, recorreu-se a uma formadora local e trabalhou-se de início com os toscos e pesados teares tradicionais. Mais tarde, e com as devidas explicações, se recorreu também a formadoras externas (incluindo designers) e se comprou teares modernos, muito mais leves e produtivos. Deste modo, as mulheres em formação receberam elementos de teoria da cor ou de debuxo, que lhes permitiram passar de uma condição de meras executoras, reproduzindo os padrões tradicionais, à de reais criadoras. Também os cursos de doces tradicionais ou de plantas aromáticas, foram sempre precedidos de uma recolha exaustiva dos saberes e saber-fazer tradicionais, mas igualmente enriquecidos com contributos exteriores, numa busca constante de sínteses criativas entre a tradição e a inovação.
Também projectos de investigação colocados ao serviço do desenvolvimento do território serrano, como os referentes à aguardente de medronho, à utilização da energia solar ou à raça caprina algarvia, souberam combinar conhecimentos locais e científicos, souberam alternar a investigação on farm e on station, de modo a produzir resultados rigorosos e enquadrados com as reais necessidades dos produtores locais.
É importante buscar colaboração nos próprios habitantes da região em que se trabalha (evitando, quando possível, consequentes conflitos internos).
Duas prioridades se definiram desde os primeiros dias: o apoio às crianças e a criação de emprego. Logicamente, a combinação de ambas levou a que jovens locais fossem mobilizados para trabalhar nos 4 recém-criados Centros de Animação Infantil. Estes jovens, em maioria do sexo feminino, foram recomendados pelos Presidentes de Junta e bem aceites pelas famílias envolvidas.
Para não estarem apenas a “cuidar das crianças” mas poderem prosseguir um trabalho educativo, definiu-se um plano de formação em serviço: um elemento da equipa acompanhava a actividade dos animadores no Centro, um dia por semana, analisando com eles no final as ocorrências mais salientes. Dois dias por mês, todos os animadores eram reunidos, em Faro, na Escola Superior de Educação, para sessões mais estruturadas de formação, asseguradas por docentes desta instituição.
A mesma metodologia foi mais tarde adoptada relativamente ao recrutamento e formação dos chamados “animadores locais”, jovens normalmente já implicados em actividades locais e que tiveram um papel essencial na implementação, em cada freguesia, de importantes programas e projectos de desenvolvimento local, como os Programas europeus LEADER e EQUAL. No LEADER I, trabalharam 27 animadores locais para 31 freguesias do Algarve e do Alentejo. A Animação Territorial procurava fomentar uma cultura de desenvolvimento e um ambiente favorável à emergência de iniciativas e projectos, colectivos ou individuais, assim como à circulação de informação, à abertura a ideias novas… Como afirmava um animador: “Nós temos de ter a humildade e a coragem de pertencer verdadeiramente à comunidade na qual se trabalha”.
Estes jovens animadores tinham, em regra, uma escolaridade limitada. A vontade de aprender mais e a confiança que este processo lhes despertou, levou vários a retomar estudos, quer atingindo o 12.º ano por via do Ensino Recorrente ou dos Centros de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências, quer mesmo completando cursos de Ensino Superior. Em Novembro de 1994, no Encontro “A Mulher e a Serra”, com 61 participantes, uma delas, bastante jovem, explicava a sua inscrição numa acção de formação pelo “desejo de ser mais”.
Procurar a verdadeira autoridade dentro da comunidade, que nem sempre é a formalmente institucionalizada.
Uns meses antes do início formal das intervenções no terreno, organizou-se uma reunião em Altura, para que foram convidados, por um lado, representantes das instituições regionais e, por outro, três pessoas de cada uma das freguesias do chamado “Nordeste Algarvio”: o Presidente da Junta, um empresário e um jovem desempregado. Após 2 dias de comunicações e diálogos, a conclusão geral e final foi a de que havia apoios adequados para responder a muitos dos problemas daqueles territórios e havia pessoas em cada um deles com vontade e capacidade de avançarem com iniciativas, mas faltava um “elo de ligação” entre as necessidades locais e as medidas em vigor. Daí a rápida criação de uma estrutura de intervenção, a partir do Instituto Politécnico de Faro.
Já no decurso da intervenção vieram a constituir-se Comissões de Famílias e, depois, associações locais, para a gestão dos Centros de Animação Infantil. Vários participantes activos neste processo vieram mais tarde a assumir funções oficiais nas respectivas freguesias, em diversas capacidades. Inclusivamente, uma animadora local e uma formanda de um curso para o auto-emprego foram mais tarde eleitas como Presidentes de Junta.
É importante ver técnicos extensionistas e antropólogos a trabalhar de mãos dadas. Não se pode dispensar a participação do antropólogo. Só assim “a lavoura será uma variedade de trabalho industrial”. E acabe-se de vez com o mito de uma pobreza agrícola sem remédio.
Embora sem dar prioridade a uma profissão específica, como a de antropólogo, é possível afirmar que se seguiu uma abordagem antropológica, que contou com uma equipa multidisciplinar e também com a colaboração intensa e regular de muitos residentes. A primeira grande preocupação foi a de apagar o estigma do “serrenho”, como epíteto depreciativo. Dando a “volta por cima”: em tudo o que se fazia e escrevia, a imagem de marca era a “Serra”, pondo em evidência as qualidades e virtualidades das suas pessoas e dos seus demais recursos. Assim se lançaram iniciativas, como a “Feira da Serra” ou o “Jornal da Serra”. Neste, escrevia uma leitora, em Junho de 1995: “…eu sou uma “filha da Serra”, pormenor que nunca ocultei mas do qual, é preciso ser honesta, nunca me orgulhei. Visto significar ignorância, atraso. Agora, após conhecer e ler o vosso Jornal, começo a valorizar a minha origem serrenha e a correspondente cultura própria que adquiri na minha infância…”
É essencial, aqui, a humildade de assumir uma posição, não de formador, não de mestre, não de professor, mas fundamentalmente de facilitador de algumas respostas parciais, face às solicitações que vão sendo expressas, de forma efectiva e rigorosa, nos próprios locais e momentos de uma intervenção que se quer capacitadora ou geradora de “empowerment”. Os projectos desenvolvidos corresponderam, em geral, a situações e dinâmicas educativas em que cada pessoa, pelo simples facto de nelas se encontrar envolvida, acaba por sentir que melhora, que se aperfeiçoa, que se vai (auto)formando.
Como afirmava uma animadora local, hoje Presidente de uma União de Freguesias: “Muitas pessoas tinham vergonha de dizer que viviam no interior rural. Agora é diferente, as pessoas têm orgulho em fazer saber que vivem na Serra. Isso acontece porque temos uma qualidade de vida diferente, para melhor. Eu acredito no interior algarvio e também acredito que é possível fazer alguma coisa, mesmo coisas pequenas, que, quando unidas e articuladas, podem proporcionar melhores condições de vida às populações locais e fazê-las apreciar devidamente o território onde vivem. Esta estrutura de animadores implementada pela In Loco permitiu que todo um conjunto de projectos surgisse e se desenvolvesse. Inicialmente era bastante frustrante. Hoje eu vejo instalações turísticas, unidades produtivas e restaurantes novos ou melhorados, muito mais actividades de associações locais e uma imensidão de novas actividades e iniciativas de toda a espécie. Há alguns anos, as pessoas diziam «o Algarve é só mar e praia!». Hoje, até a comunicação social descobriu o «outro Algarve».”
ALBERTO MELO | Nasceu em Lisboa, em 1941. Licenciou-se em Direito (1963), na Universidade de Lisboa, e concluiu, em 1971, na Universidade de Manchester, uma Pós-graduação em Educação de Adultos.
Integrou a Comissão Instaladora da Escola Superior de Educação de Faro, em Dezembro de 1983, ficando desde então ligado ao Instituto Politécnico de Faro, mais tarde à Universidade do Algarve, onde leccionou e, entre 2000 e 2007, coordenou o Gabinete dos Programas Europeus (incluindo ERASMUS). Entre 1986 e 1998, dirigiu uma associação de desenvolvimento local – In Loco- com intervenção no interior rural do Algarve.
Antes disso, tinha trabalhado em França: primeiro, como Consultor na OCDE, em seguida, como Conselheiro na Delegação Permanente de Portugal junto da UNESCO e, por fim, como Professor na Universidade de Paris IX. Também residiu em Inglaterra, onde foi docente na Open University e na Universidade de Southampton.
Foi responsável por diversas missões, nacionais e internacionais, em áreas como desenvolvimento local integrado, cidadania activa, democracia participativa, educação e formação de adultos.
Relativamente a este último sector, foi por duas vezes responsável pela elaboração e implementação da política pública, no interior do Ministério da Educação, primeiro como Director Geral de Educação Permanente (1975-76) e, mais tarde, como Encarregado de Missão do Grupo responsável pela implementação do Projecto de Sociedade SABER+ (1997-99), que esteve na origem de medidas como os Cursos de Educação e Formação de Adultos e os Centros Novas Oportunidades, entre outras.
Em finais de Junho de 2007, foi nomeado, em comissão de serviço, Delegado Regional do IEFP, I.P., no Algarve, cargo que ocupou até Setembro de 2010, tendo em seguida regressado à Universidade, como Assessor do Reitor, passando à aposentação por limite de idade em finais de Janeiro de 2011.
Entre 2012 e 2015, foi Presidente da Direcção da Associação Amigos do Alentejo, onde se integra a Universidade Sénior de Loulé. Desde 2014, integra a Direcção do Conselho Executivo da APCEP, Associação Portuguesa para a Cultura e Educação Permanente, e também a Mesa da Assembleia Geral da Associação In Loco.
Em 2003, foi agraciado como Grande Oficial da Ordem de Mérito pelo Presidente da República e, em 2019, integrou o Hall of Fame Internacional da Educação Permanente e de Adultos.