Para a História da Literatura Popular Portuguesa
POR ANA MARIA PAIVA MORÃO
Foi com o maior prazer que aceitei o convite da Fundação Manuel Viegas Guerreiro para, no âmbito da sua acção de divulgação das obras do seu Patrono, fazer uma análise ao livro Para a História da Literatura Popular Portuguesa. Primeiro, porque há que reconhecer a sua importância para quem se dedica aos estudos da Literatura Oral Tradicional e, depois, porque Viegas Guerreiro foi o fundador do Centro de Tradições Populares Portuguesas (CTPP), que levou o seu nome e foi um dos Centros de Investigação da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tendo-se juntado, em 2012, ao CLEPUL (Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias), na mesma instituição universitária, do qual é hoje uma das suas Linhas de Investigação e da qual me cabe, presentemente, ser Coordenadora.
O livro Para a História da Literatura Popular Portuguesa, publicado em 1978 e com 2ª edição em 1983, conta com apenas 116 páginas. No entanto, na sua pequena extensão, é obra que apresenta uma abrangente, se bem que condensada, historiografia da Literatura Popular Portuguesa, bem como a clarificação de conceitos sobre esta e uma crítica, positiva ou negativa, sobre as posições tomadas por estudiosos e escritores relativamente a este ramo dos estudos literários, que na altura em que o livro foi escrito, era ainda uma espécie de parente pobre que suscitava algum menosprezo nos meios considerados eruditos.
Antes de prosseguir com a análise desta História, será conveniente que se refiram as circunstâncias do contexto do surgimento da mesma.
Uma das mais importantes modificações que se deu nas instituições universitárias após o 25 de Abril de 1974, foi a diversificação dos cursos e a introdução de disciplinas como as Literaturas Marginais e a Literatura Oral Tradicional, se bem que a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa tivesse contado, no seu passado, com investigadores nestas matérias como Adolfo Coelho, Teófilo Braga e Leite de Vasconcellos. Porém, esse processo não foi imediato e em Outubro de 1974 as universidades não abriram o 1º ano, colocando o problema de como ocupar os milhares de candidatos. Uma das soluções, de iniciativa estatal, foi a criação do Serviço Cívico Estudantil, em Maio de 1975, sendo uma das suas acções o chamado “Plano Trabalho e Cultura”, proposto e orientado por Michel Giacometti. Este Plano criou equipas formadas por jovens que, após um breve curso de preparação, foram enviadas de Norte a Sul de Portugal, sendo uma das suas tarefas efectuar a recolha da música regional e da literatura popular das áreas para onde foram enviados. Os registos coligidos deveriam ser integrados num Centro de Documentação Operário-Camponesa e os seus duplicados enviados para a Faculdade de Letras, à responsabilidade do Professor Viegas Guerreiro, autor do Guia de Recolha e Literatura Popular que devia orientar os jovens brigadistas na recolha dos espécimenes de Literatura Popular, sendo o guia do Inquérito Musical da responsabilidade de Michel Giacometti.
A equipa liderada por V. Guerreiro, que dirigia já o projecto Recolha e Estudo da Literatura Oral Portuguesa, criado em 1973 na Faculdade de Letras, empenhou-se activamente na transcrição e subsequente trabalho sobre os registos obtidos pelo “Plano Trabalho e Cultura”. Em 1993, por iniciativa de Viegas Guerreiro é criado o CTPP, que acolheu as referidas composições tradicionais, as quais constituem as “Recolhas Históricas” deste Centro, que veria o seu espólio enriquecido com as “Novas Recolhas”provenientes dos trabalhos dos alunos de Literatura Oral Tradicional de João David Pinto Correia, seu Coordenador Científico até ao seu falecimento, em 2018. É de notar que, nestas novas recolhas, foram seguidos os critérios e métodos de V. Guerreiro, naturalmente adaptados às novas circunstâncias.
O entusiasmo com que V. Guerreiro viveu o período que antecedeu e se seguiu ao 25 de Abril deu continuidade ao labor de etnógrafo que vinha desenvolvendo há anos sobre os Macondes de Moçambique e os Bochimanes do Sul de Angola e na qualidade de colaborador de Leite de Vasconcellos e, depois da morte deste, de organizador/editor de uma importante parte do seu espólio (Contos Populares Portugueses,1955, de Romanceiro Português, 1958-1960, Etnografia Portuguesa, a partir do 4º volume, 1958 até ao 10º, 1988).
V. Guerreiro parece agora sentir a necessidade de teorizar o seu conceito de “literatura popular” e de chamar a atenção para o menosprezo com que esta vinha sendo tratada por aqueles que, escritores ou estudiosos, constituíam uma “elite” divorciada por completo do “povo”. É, pois, neste momento da sua vida científica e sob o império dessa vontade, que surge a obra Para a História da Literatura Popular Portuguesa, em cuja Introdução analisa o que lhe parece carecer de maior esclarecimento, ou seja, definir o objecto de que se trata. Assim, começa por mencionar as designações atribuídas às “composições que o povo ouve, conta, recita ou canta”, tais como literatura oral e literatura tradicional, que rejeita a favor da designação que claramente prefere, a de literatura popular. Note-se que nem nos dias de hoje é completamente pacífica a utilização destas ou de outras designações, mas não cabe aqui que nos alonguemos sobre a questão, referindo que apenas curiosamente, veio a adoptar-se uma combinação dos termos rejeitados com a expressão Literatura Oral Tradicional a qual, no entanto, obriga à menção da existência de uma Literatura Tradicional escrita, como é o caso da Literatura de Cordel (que aliás V. Guerreiro refere na obra). Segue-se, porque Viegas Guerreiro procura sempre ser rigoroso na explicação das suas opções, uma minuciosa explanação do que entende ser, ou do que cabe no conceito de “povo”, visto que está aqui, verdadeiramente, o busílis da questão, i.e., a oposição entre a “oralidade” e a “escrita” e o fosso que separa o “povo ignorante” e os detentores do saber livresco. A tónica nesta dicotomia e a revelação do desconhecimento gerado pelo desdém que os letrados experimentam e, mais que isso, expressam, pelo povo ignorante, ingénuo e tosco e pelas suas realizações, manter-se-ão através desta Para a História da Literatura Popular Portuguesa, ainda na Introdução. Nesta, V. Guerreiro menciona os “Detractores da Arte Popular” e também “Os Louvadores” de tal arte, os quais, parecendo admirá-la, não deixam de, naturalmente em graus diversos, lhe excluir a “lucidez intelectual” e o “juízo crítico” ou de atribuir ao povo a qualidade de “entidade mítica de um mundo primitivo”, livre de artifícios, porém inapto de produzir “arte perfeita”. Desta crítica, V. Guerreiro não exclui Almeida Garrett ou Menéndez Pidal, de quem, aliás, os estudos do romanceiro vieram a adoptar o conceito e o temo “tradicional”.
A Introdução fecha com uma chamada de atenção para a “Importância da Literatura Popular” direcionada sobretudo aos estudiosos que parecem indiferentes àquela matéria, em disciplinas como a Linguística (de que isenta Lindley Cintra e Paiva Boléo devido aos estudos que ambos dedicaram à linguagem popular), a História, a Psicologia, a Filosofia, a Sociologia ou a Antropologia. De todos, V. Guerreiro estranha e critica a desatenção aos preciosos elementos que provérbios, contos, quadras, adivinhas ou anedotas contêm e traduzem de um mundo que “foi, é e sempre há-de ser”. Em suma, esta introdução constitui como que o programa de um manifesto sobre a Literatura Popular, definida como aquela que “corre entre o povo, toda a peça literária que por ele passe, com muita ou pouca demora, recente ou antiga […] a anónima e a que tem nome, transmitida oralmente ou por escrito” e que, repete, não carece “do selo do tempo, da chancela tradicional, mas de que tenha sido ou seja autêntica, viva, funcional”, entendimento que reiterará em escritos seus posteriores[1].
À Introdução segue-se “Subsídios para a História da Literatura Popular Portuguesa”, que o autor distribui por sete capítulos, constituindo o sétimo uma amostragem de textos que ele considera exemplificativos de um conto, uma anedota, uma lenda, um romance, uma quadra desenvolvida em décimas, duas cantigas, uma de tipo paralelístico e outra de “carácter antigo”, algumas quadras, adivinhas e provérbios, um ensalmo e uma oração.
A Parte I, dedicada à Língua Portuguesa, é breve e serve sobretudo de alerta para a coexistência de uma língua falada e outra escrita, uma realidade que reflecte a oposição entre a literatura “culta” e a “popular”. Na Parte II – Época Medieval, Período Trovadoresco, o autor demonstra que a existência desta última apenas se prova em testemunhos indirectos, pelas referências que lhe são feitas em textos literários, legislativos ou eclesiásticos, quantas vezes de carácter reprovador das manifestações de divertimento popular. O que também se revela, neste capítulo e nos que se seguem, é a erudição de V. Guerreiro, que refere o surgimento no Andaluz, nos fins do séc. IX a princípios do séc. X, da moaxaha, poesia lírica de versos curtos de cunho popular e o descobrimento da existência, em 1948, das coplazinhas de nome carjas, que não tendo propriamente a ver com a lírica que floresceria em solo português, indicaria um fundo comum de onde saíram formas divergentes de poesia popular feminina. Daí que as cantigas de amigo galaico-portuguesas, sobretudo as paralelísticas, decalcariam conteúdo e forma das similares do povo, que se conservariam através dos tempos em textos recolhidos ainda nos anos 30 por Vasconcellos no Norte de Portugal. Do período trovadoresco aos fins do século XV, aponta o autor a ausência de registos escritos da “musa” de jograis e demais povo que não tem lugar, por exemplo, no grande Cancioneiro Geral de Garcia de Resende; da prosa, aponta a ausência do labor dos “vilãos” nesse campo dando, porém, notícia de narrativas de histórias e lendas que corriam na boca do povo em, por exemplo, nos Livros de Linhagens. Sem que deles haja compilação da época, regista também V. Guerreiro a existência de provérbios inseridos em composições de trovadores. Ainda mais avessos à arte popular foram, diz o autor na Parte III, os artistas do Renascimento e não só estes; afinal, a alta sociedade, especialmente o clero, concorria para tentar abafar a “voz alegre do povo”. Tal objectivo, contudo, nem sempre era conseguido, como transparece em Gil Vicente, cujos autos documentam vilancicos, modinhas espanholas e os velhos romances. Estes serão desprezados no séc. XVIII pela elite, mas não pelo povo, que continua a transmiti-los oralmente, como destaca V. Guerreiro, que refere igualmente a importância da literatura impressa panfletária e messianista, a ausência de narrativas de origem popular reunidas em volume e a fortuna da literatura de cordel, de que o séc. XVIII viu publicar centenas de obras acessíveis ao povo. A parte IV é dedicada a Garrett e ao romanceiro, que o introdutor do Romantismo em Portugal considerou a matéria que permitiria libertar e renovar a poesia portuguesa, subvertida pelos modelos greco-latinos cultivados pelas gerações anteriores. V. Guerreiro, que reconhece a Garrett o facto de ter sido o primeiro na Península a ter perfeita consciência da importância histórico-literária do “romance tradicional”, analisa com acuidade o aproveitamento que este faz dos romances em cada um dos dois volumes do seu Romanceiro.Enquanto quea Adozinda é uma construção literária a partir do romance Silvana, os romances publicados no segundo volume não são transformados tanto “como se tem dito” embora os “retoque”, como aliás fez Menéndez Pidal. V. Guerreiro, contudo, não isenta Garrett de crítica, pois se este teve o mérito de se inspirar no mundo poético popular, só foi, diz, “verdadeiramente grande” nas Folhas Caídas. Na Parte V, dedicada aos Continuadores de Garrett, V. Guerreiro destaca os nomes de Teófilo Braga, Adolfo Coelho e Leite de Vasconcellos, dos quais sumariza as respectivas obras e observa que estes são os primeiros a dar “rigoroso tratamento científico” à matéria etnográfica de que se ocuparam, observação tanto mais importante visto que é esta postura que ele próprio adopta no seu trabalho. Não deixará, porém, de endereçar algumas críticas aos dois primeiros e recomenda alguma cautela a ter na apreciação da obra de Teófilo, de quem valoriza as ideias mas não as explicações e teorias, realçando contudo ser ele o autor da única História da poesia popular portuguesa até então escrita. Sobre a obra de Adolfo Coelho, se bem que a apelide de notável, V. Guerreiro também não deixa de apontar que a mesma padece do rigor científico que tanto o preocupava, bem como o facto de este não ter abandonado por completo o conceito romântico do povo inculto e atrasado, que o leva à falsa dicotomia “literaturas propiamente ditas” e “literaturas populares”. De Vasconcellos, menciona os conceitos que este tem de “poesia popular”, aquela que o povo “cria ou adopta, anónima, velha, tradicional” e de “poesia popular individual”, aquela que é de autor popular e “assinada”. Destaca, sobretudo, a importância do trabalho de campo do Mestre e o seu extremo cuidado em registar sem nada alterar, tal como ele próprio, afinal, fazia e ensinava a fazer. Na parte VI, sobre a Época Actual, alerta para a extrema necessidade de salvaguardar e estudar o que ainda existe e lamenta o desinteresse universitário relativamente à literatura popular, com as excepções de Lindley Cintra, Jacinto do Prado Coelho, João David Pinto Correia, Michel Giacometti e outros. Denuncia a falta de um plano de recolha sistemática que se pretendeu colmatar com a criação da Linha de Acção para a Recolha e Estudo de Literatura Popular Portuguesa do Centro de Estudos Geográficos do Instituto Nacional de Investigação Científica e finaliza com o alerta da necessidade da criação de uma entidade coordenadora das actividades levadas a cabo por este e outros organismos que então se ocupavam de trabalho semelhante, sendo tempo de acabar com “amadorismos e improvisações”.
Para a História da Literatura Popular Portuguesa é, pois, ainda hoje em dia e malgrado muito do que contém ter sido ultrapassado, um livro de inegável importância para os estudos da Literatura, mormente na sua vertente “popular”, para utilizar ainda as palavras de Manuel Viegas Guerreiro.
[1] Como “Litterature populaire. Autour d’um concept”, “Poesia Popular: Conceito, a Redondilha, a Décima; Décimas em Poetas do Alentejo e do Algarve” e “Literatura e Literatura Popular? Casos Exemplares”, este publicado já após o seu falecimento. Cf. Bibliografia citada.
BIBLIOGRAFIA CITADA
GUERREIRO, Manuel Viegas, Guia de Recolha e Literatura Popular, Lisboa, Instituto Português do Património Cultural, 1976.
————————————–, Para a História da Literatura Popular Portuguesa, Colecção Biblioteca Breve, Vol. 19, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa,1978.
—————————————, “Litterature populaire. Autour d’un concept”, in AAVV, Litterature Orale Tradittionnelle Populaire. Actes du Colloque, Paris, 20-22 Novembre 1986, Paris, Fondation Calouste Gulbenkian, 1987, pp. 11-19.
—————————————-, “Poesia Popular: Conceito, a Redondilha, a Décima; Décimas em Poetas do Alentejo e do Algarve” in Manuel Viegas Guerreiro (Coordenador), Literatura Popular Portuguesa. Teoria da Literatura Oral/Tradicional/Popular, Acarte, Fundação Calouste Gulbenkian, 1992, pp. 191-237.
—————————————–, “Literatura e Literatura Popular? Casos Exemplares” in Jorge Freitas Branco, Paulo Lima (orgs), Artes da Fala, Celta Editora, 1997, pp. 7-17.
ANA MARIA PAIVA MORÃO é doutorada em Estudos Literários (especialização Literatura Oral e Tradicional) pela Universidade de Lisboa, investigadora integrada do CLEPUL (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa), onde é Coordenadora da Linha de Investigação de Tradições Populares Portuguesas ‘Prof. Manuel Viegas Guerreiro’ e Colaboradora do CIAC, Centro de Investigação em Ciências da Comunicação e Artes, Universidade do Algarve. Docente do módulo Literatura Oral Tradicional no Curso de Pós-Graduação em Património Cultural Imaterial da Universidade Lusófona e Formadora acreditada pelo Conselho Científico-Pedagógico da Formação Contínua nas áreas e domínios de A151 Literatura Oral Tradicional e de A156 Português. Membro da International Ballad Commission (Kommission für Volksdichtung) e da Direcção da Associação para a Salvaguarda do Património Imaterial Cultural. Autora de artigos de temática relacionada com a Literatura Oral Tradicional e com o Património Imaterial.