Uma Excursão à Serra do Algarve
POR IVANI STELLO FARIAS
Na ação de divulgação das obras do seu Patrono, a Fundação Manuel Viegas Guerreiro, fez-me o convite para integrar um renomado grupo de investigadores de diferentes disciplinas do conhecimento, os quais colaboram para dar visibilidade ao enorme legado literário do ilustre professor liceal e universitário, Manuel Viegas Guerreiro (MVG). A mim coube a análise de uma das suas obras[1].
Nesta obra, MVG reafirma a sua vocação de incitador da investigação na área da literatura popular oral, descrevendo nos mínimos detalhes o modo de vida das “gentes da terra”, sem deixar de expressar sua própria perceção como “filho da terra”. A sua experiência nas áreas da antropologia cultural e da etnografia, lhe permite contemplar e interpretar as sociedades humanas, ao mesmo tempo em que estrutura seu pensamento para encontrar os significados culturais contidos nas ações do cotidiano e nos comportamentos apresentados pelos atores investigados. Deste modo, apresenta suas perceções e inquietudes, relacionando-as aos diversos contextos: naturais, culturais, sociais, políticos e económicos, referentes ao fenómeno observado.
Em poucas páginas, o autor faz um breve relato de uma excursão de dois dias à serra do Algarve, num percurso entre Corcitos, Cabaça, Barrigões, Sarnadinha, Montinho, Corte Fidalgo, Sítio das Éguas, Sobreira, Monte do Alganduro e Ameixeirinha. Para obter as informações necessárias relativas ao contexto social das comunidades e para estabelecer proximidade e interagir com as pessoas em seu espaço sociocultural, utiliza o método de observação participante ativo e, desta forma, obtém informações para compor a sua narrativa.
Vale a pena ler e reler esta obra. Nela encontramos uma descrição interpretativa da dinâmica social, da cultura, da identidade, dos elementos referentes a geografia, a paisagem e aos patrimónios materiais e imateriais das comunidades visitadas e das poucas pessoas que encontrou em seu percurso.
A categoria dos ditos, dos versos e das adivinhas, como cultura popular oral, foi a abordagem metodológica adotada para facilitar a proximidade e para obter as informações referentes ao modo de vida, atitudes, virtudes, saberes e fazeres dos ofícios das gerações passada, transmitidas ao presente e ao futuro. A parceria estabelecida com o seu guia e companheiro de viagem, o almocreve Joaquim Boicinha, contribuiu para o êxito da comunicação investigativa em que ambos penetram de maneira respeitosa na intimidade dos sujeitos envolvidos e recolhem as informações desejadas. Os dois posicionam-se como mediadores, entre os sujeitos e o contexto investigado, postura intermediária que permitiu o desenrolar do diálogo necessário para a coleta das informações referentes aos status dos sujeitos e de suas posições diante a sociedade, e assim, sequencialmente, MVG criou um quadro teórico, detalhando as regras sociais condicionadas nos contextos económico, cultural e identitário dos sujeitos envolvidos e das comunidades que visitou. Além destas questões, ainda podemos extrair da sua narrativa, o seu lado humanista expressado pela descrição dos seus próprios sentimentos, inerentes ao fenómeno observado, tornando a leitura mais envolvente e rica.
Não poderei deixar de assinalar a comida como instrumento de comunicação e de identificação de pessoas e comunidades, ou seja, onde há comida e pessoas há comunicação, instrumento este que possibilita criar uma articulação entre o narrador, o objeto narrado e o leitor da narrativa. Este fenómeno ocorre devido a sua natureza dinâmica e integrativa que o ato alimentar proporciona. Deste modo, o património cultural alimentar identifica os indivíduos enquanto agentes sociais e sua posição na sociedade, sendo a comida um marcador da identidade e da cultura de uma comunidade. Quando este ato se associa aos ofícios e labores dos detentores dos afazeres culinários, conseguimos abstrair informações mais precisas para a compreensão cultural e identitária de pessoas e comunidades em determinada época.
O registo etnográfico que MVG nos oferece neste breve relato é um valioso contributo para o conhecimento do património sociocultural do interior algarvio. Pontuo a qualidade, a sensibilidade e a originalidade deste trabalho, onde MVG enquadra epistemologicamente a sua narrativa, integrando informações de forma clara, leve e profunda sobre a cultura popular oral e do património material e imaterial da serra e do barrocal, informações estas, repletas de conteúdos informativos sobre o panorama da dinâmica territorial e das relações identitárias e culturais em contexto comunitário e/ou individual.
Por fim, lanço o convite para que façam a leitura completa desta obra que é, sem dúvida alguma, uma referência de grande relevância para estudos científicos de diversas disciplinas do conhecimento e para os apaixonados pela genuinidade do interior algarvio.
[1]Uma Excursão à Serra do Algarve. Beira-Serra do Algarve, Corcitos, publicada em 1959, e reeditada em 1991, Loulé: Câmara Municipal. Separata de: A Voz de Loulé.