Manuel Viegas Guerreiro e João David Pinto Correia: em busca da voz popular
POR ANA ISABEL SOARES
Quantas vezes lemos um artigo informativo, recheado de dados, datas, lógicas, no qual o importante é o tópico estudado, mas se acaba por suspeitar, nele e por ele, tanto – ou tanto mais – sobre quem o escreve, os seus autores, quanto sobre a matéria de que pretende informar. Em 1986, Manuel Viegas Guerreiro e João David Pinto Correia davam a publicar, no volume 6 da revista do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, uma peça breve acerca dos almanaques. Traziam para aquelas 10 páginas, além de reproduções de capas e algumas páginas interiores dessas publicações periódicas ao longo dos tempos, notas sobre a sua origem (desde antes da idade da imprensa), a etimologia da designação, exemplos e história de almanaques europeus e indicações (pistas, na verdade, a seguir posteriormente pelos leitores) relacionadas com os seus conteúdos. Uma leitura rápida oferece a quem lê o núcleo do que deve saber-se sobre os almanaques. Mas, desde o título, propõe também o conhecimento acerca de quem o assina: dizer que equivalem a uma “sabedoria”, que correspondem às “tarefas” do Tempo, é identificar naquelas formas mais ou menos marginais, nada canónicas de literatura fontes preciosíssimas de informação literária; revela-se o olhar de quem assim as considera.
A oferta deste ensaio breve não se limita, portanto, à leitura das suas páginas: confirma também a grande cumplicidade entre os dois autores, que ali (como noutras ocasiões, até mais notórias) unem autorias e interesse. Precisamente, que interesse terão os almanaques para quem, em 1986, se embrenhava na organização de colóquios sobre literatura popular, oral e tradicional, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian? Nas palavras de João David Pinto Correia, este olhar que a contemporaneidade lançava na direção da matéria medieval (nomeadamente, no que respeitava às origens ou às fontes dos romanceiros), sobretudo, popular, constituía um “Novo Romantismo” – à semelhança do movimento artístico que, na dobra do século XVIII para o XIX, fez com que por toda a Europa vários intelectuais dessem atenção às vozes mais presentes e mais silenciadas, as vozes que, não atingindo os pináculos das mais sublimes criações, pertenciam às mãos que faziam erguer as catedrais. Recrudescia, no final do século XX, a vontade de redescobrir aquilo que fora deixado nas margens dos estudos canónicos: a literatura pouco considerada como literatura, as pistas daquelas vozes que, apesar de tudo, continuavam – continuam – silenciadas.
De oferendas sábias aos reis ainda antes do século IX, os almanaques passam a ser a “folhinha, endimião, camião, calendário, lunário, prognóstico, sarrabal ou mesmo diário” (p. 3, itálicos no original) para os ofícios e os quotidianos de anónimos pescadores, amanhadores de terras, gente comum. O formato coincide com o que é utilizado na literatura de cordel, outra forma periférica da literatura (outro foco do interesse de Manuel Viegas Guerreiro e de João David Pinto Correia). Será no facto de serem o repositório de discurso relativo a “efemérides”, “curiosidades, conselhos práticos, mezinhas, pequenas notas sobre acontecimentos, fenómenos ou personagens”, “notas astrológicas”, “anedotas, adivinhas, provérbios, quadras e mesmo algumas poesias” (p. 4) – que os dois estudiosos entendem os almanaques como publicações de grande valor para o conhecimento que buscam.
Manuel Viegas Guerreiro foi sempre considerado uma referência incontornável nos estudos de Literatura Oral e Tradicional – tendo sido o criador, em 1993, do Centro de Tradições Populares Portuguesas (CTPP), que posteriormente deu origem ao Grupo de Investigação de Tradições Populares Portuguesas “Manuel Viegas Guerreiro” do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da FLUL (CLEPUL). João David Pinto Correia, por seu lado, dirigiu o CTPP da Universidade de Lisboa (polo do CLEPUL), além de ter tido a seu cargo a responsabilidade pelo Arquivo Digital de Literatura Oral e Tradicional (ADLOT), projeto conjunto da Fundação para a Ciência e Tecnologia e da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Ele próprio se assumiu inúmeras vezes como alguém que continuava o trabalho de Lindley Cintra, Viegas Guerreiro, Maria Aliete Galhoz, Michel Giacometti, ou Aida e Paulo Soromenho. Não surpreende, pois, que Pinto Correia e Manuel Viegas Guerreiro tenham pretendido deixar uma nota o mais rigorosa possível, próxima mesmo do que poderia constituir uma entrada enciclopédica, sobre um dos lugares textuais mais preciosos, verdadeiro portal de acesso a formas de cultura que, no século XIX, abrangiam desde a “população rural, e dos arredores das cidades” até “um público geral, mais burguês e citadino” (p. 6), feito de indivíduos “completamente distanciados do avanço científico e técnico” (idem) que poderia mascarar o discurso do homem comum com que procuram contactar.
É a mescla de “jogos, enigmas, palavras cruzadas, passatempos”, numa “muito abundante e sobretudo heteróclita «Secção Literária, Científica, Artística e Recreativa»” (p. 7), que os autores parecem apreciar nas publicações periódicas que os Almanaques constituem. Notando o anacronismo dos almanaques no mundo contemporâneo (o que não diriam hoje, perante o infinito caudal de publicações populares, disseminadas e permanentemente replicadas em posts e retweets…), terminam o ensaio sublinhando, sinteticamente, que os modos discursivos dos almanaques portugueses acompanharam as várias fases políticas do país: nos “anteriores ao advento da República avolumam a ironia, o gracejo, a chalaça, mas é comedidamente que se dão conselhos e advertem erros” (p. 9). A República “[soltou-lhes] a língua para mais claras repreensões, que logo se prende, com o advento do regime de Salazar” (idem) – até que, por fim, a revolução democrática devolve aos almanaques “a liberdade crítica, que se complementa até com livre propaganda política. E tudo, geralmente, em linguagem chã, popular, popularesca” (idem). A última observação dos autores aponta para o lugar onde se espelha o objeto de estudo a que ambos dedicaram uma porção relevante das suas vidas: o chão simples da voz popular.