Descrições do Algarve do século XVI
POR JOÃO SABÓIA
Foi com agrado que acolhi o convite para uma releitura de Duas descrições do Algarve do Século XVI[1], já que se trata de um trabalho desenvolvido por dois Professores que muito prezo e que muito me honraram com a sua amizade, Joaquim Romero Magalhães e Manuel Viegas Guerreiro.
O Professor Doutor Joaquim Romero Magalhães, entre outras colaborações, também convidou-me a participar em diversos trabalhos, publicados desde 2004 até ao ano de 2018[2].
Relativamente ao Professor Doutor Manuel Viegas Guerreiro pude sempre contar com o seu apoio e colaboração, como foi o caso, em 1990, como presidente da Associação de Estudos Gerais Livres, assinou conjuntamente com o Presidente da Câmara, Joaquim Vairinhos, o protocolo de cooperação entre a autarquia louletana e a associação. O primeiro resultado deste protocolo foi o apoio ao projeto cultural Loulé na Rota dos Descobrimentos, de 18 de maio a 17 de junho de 1990, principalmente na parte das conferências, ajudando a trazer a Loulé os Professores Joaquim Romero Magalhães, Borges Coelho e Manuel Viegas Guerreiro, que apresentou a conferência Colombo e Portugal, no dia 18 de maio de 1990, na Galeria de Arte do Convento do Espírito Santo.
O Professor Doutor Manuel Viegas Guerreiro visitava amiúde o Arquivo Histórico de Loulé, situado na Alcaidaria do Castelo, o que, para mim, constituía um privilégio, principalmente, pelo diálogo que mantínhamos.
Quando da sua morte em maio de 1997, o Arquivo Distrital de Faro, de que era Diretor, fez uma homenagem ao Professor através de uma exposição sobre a sua vida e obra e uma palestra pelo Professor Doutor João David Correia, de 14 a 31 de outubro de 1997, no edifício do Arquivo Distrital.
A obra Duas descrições do Algarve do Século XVI, publicada em 1983, compreende, essencialmente, uma Apresentação e as transcrições da Corografia do Reino do Algarve, 1577, de Frei João de S. José, e a História do Reino do Algarve, circa 1600, de Henrique Fernandes Sarrão.
A Apresentação corresponde a um estudo sobre a evolução da corografia desde o renascimento sob a influência dos clássicos, designados por “Os Antigos, os exemplares antepassados gregos e romanos descreveram? Vamos descrever. Mas o quê?”[3].
A corografia, na época, de acordo com a distinção ptolomaica e na tradução de Pedro Nunes separava esta da geografia “O proprio da Geographia he mostrar que a terra conhecida he hũa e continua (…)”[4], ao contrário “(…) o fim do Corographo consiste em representar bem hũa parte (…)”[5].
A corografia desenvolve-se, assim, inicialmente, sob a influência dos Antigos, vai a partir do século XVI, com a pressão dos Estados que querem mais rigor, mais números e menos citações de clássicos, abraçar, crescentemente, o Novo, como os autores denominam a este progressivo caminho para a objetividade do que se vê e do que se conta, respondendo, assim, à necessidade dos Estados em conhecer o seu território físico e humano.
Deste modo as corografias, na tentativa de responder “(…) às necessidades de informação, ou de propaganda”[6], progrediram no sentido de um modelo com as seguintes questões – nome da terra, número de vizinhos ou fogos, defesas do casco urbano, produções mais importantes, as igrejas, conventos, os senhores da terra, curiosidades.[7]
Segundo os autores a descrição corográfica “no exacto sentido – pintura de lugares –“ [8] é a de Frei João de S. José, em 1577, na sua Corografia do Reino do Algarve dividida em quatro livros, de acordo com os seguintes assuntos:
1º. Descrição geral do reino do Algarve e de todas as cidades, vilas, fortalezas e outros lugares em particular.
2º. De, por e em tempo foi conquistado o reino do Algarve daquém-mar, havendo mais de quinhentos anos que era possuído dos Mouros.
3º. Que trata de como o reino do Algarve veo em poder dos reis de Portugal e foi acabado de conquistar da maneira que ora está.
4º. Das particularidades do reino do Algarve daquém-mar.[9]
O 1.º livro é o mais representativo do modelo já descrito, os autores destacam “O que nele sobretudo mais importa é a tão minuciosa quanto possível notícia que dá de todas as povoações e fortalezas”[10], salientando que “(…) é a mais notável corografia do Renascimento em Portugal, afastando as patranhas dos Antigos, (…)”[11].
No 4.º livro Frei João informa o leitor:
“Há neste reino do Algarve muitas cousas notáveis e maravilhosas e tão particulares dele só, que não se acham em outro algum, assi na própria natureza da terra como também nos costumes de que usam os moradores dela.”
“Porque quem em Portugal ou em outra qualquer parte do mundo ouve dizer que no Algarve se vareja o figo e não a azeitona e num só figueiral, andando continuamente quinze, vinte pessoas, não podem tanto apanhar que mais não madureça té se acabar, (…).”[12]
Relativamente à História do Reino do Algarve do licenciado Henrique Fernandes Sarrão, circa 1600, os autores referem que não possui a mesma qualidade do 4.º livro da Corografia de Frei João de São José, no entanto é mais completo no que respeita à minúcia como “descreve as terras do Algarve – das cidades às aldeias de uma dezena de fogos -, (…)”[13].
Os autores fazem, no entanto, distinção entre Sarrão e Frei João “(…) o frade agostinho discute opiniões de eruditos e apura factos da história da conquista do Algarve, o advogado na Casa da Suplicação limita-se a situar igrejas e conventos, fortalezas e torres de vigia, a dizer onde fica este ou aquele acidente orográfico, a descrever uma ou outra curiosidade. Não tem o seu modo de contar o delicioso pinturesco do de Frei João. Não se desvia, um momento, do objectivo que se propõe; por outras palavras: vai direito ao fim sem rodeios (…)”[14].
Como exemplo do pormenor de descrição de Sarrão os autores mencionam o Almargem de Loulé que este autor explica claramente como sendo reserva de pastagens, “de que os arquivos permitiam nebulosa aproximação (…)”[15].
Vejamos o texto:
“Junto desta lagoa está um sítio de terra, a que chamam o Almargem, muito abundante d`ervas e fermoso bosque de arvoredos e espessos matos, com suas fontes, onde andam a pascer os cavalos dos moradores da vila e não entram outros d`outra parte, e tem um homem posto pela Câmara que os guarda, e são muito fermosos e gordos. Neste sítio de Quarteira há grande criação de cavalos e os milhores e mais afamados do reino.”[16]
Também, descreveu catástrofes naturais.
“No ano do Senhor mil e quinhentos e outenta e sete deu a água da chuva com muito ímpeto no arrabalde da vila, da parte do norte, e pôs por terra cento e dez casas, e morreram quarenta pessoas, pouco mais ou menos, e, morrendo vestidos, foram achados nus, foi como furacão, a que vulgarmente chamam dilúvio de Loulé.”[17]
Estas corografias tiveram destinos diferentes, a do Frei João de S. José pela sua modernidade foi praticamente ignorada no seu tempo, vindo posteriormente a ampliar a sua divulgação, ao contrário da do Henrique Fernandes Sarrão, com descrição mais simples, foi usada imediatamente, no entanto poucos a citaram.
“Século e meio levaram a servir-se dela como se de corografia contemporânea se tratasse.”[18]
[1] Duas descrições do Algarve do Século XVI. Apresentação, leitura, notas e glossário de Manuel Viegas Guerreiro e Joaquim Romero Magalhães. Colecção Cadernos da Revista de História Económica e Social, 3. Lisboa: Sá da Costa, 1983. 182 p.
[2] Ano do seu falecimento.
SABÓIA, João – Cooperando com Joaquim Romero Magalhães. al-`ulyà. N.º 21 (2019), p. 81-89.
[3] Duas descrições do Algarve do Século XVI. p.3.
[4] Ibidem, p. 3.
[5] Ibidem, p. 3.
[6] Ibidem, p.5.
[7] Ibidem, p. 5.
[8] Ibidem, p. 5. Expressão utilizada por Pedro Nunes, p. 3.
[9] Ibidem, p. 181.
[10] Ibidem, p. 5.
[11] Ibidem, p. 6.
[12] Ibidem, p. 109.
[13] Ibidem, p. 12.
[14] Ibidem, p. 12.
[15] Ibidem, p. 13.
[16] Ibidem, p. 162.
[17] Ibidem, p. 162.
[18] Ibidem, p. 17.