A propósito do livro “Bochimanes !khū de Angola. Estudo Etnográfico”, de Manuel Viegas Guerreiro, Lisboa, Instituto de Investigação Científica de Angola/Junta de Investigações do Ultramar, 1968: brevíssima nótula
POR VÍTOR OLIVEIRA JORGE
Esta obra – um trabalho sério de etnografia, porém realizado em condições precárias – data já de uma época algo longínqua, em que a realidade africana era muito diferente da atual, em particular em termos políticos (por exemplo, Angola era ainda, anacronicamente, uma colónia portuguesa[1]; na África do Sul reinava então o estranho e indigno sistema do apartheid, etc.), mas também houve desde essa altura uma expectável modificação do contexto e das condições de vida dos povos recolectores-caçadores e dos povos pastores tradicionais do Sul do continente, pertencentes no seu conjunto a um “mundo” bem diferente dos agricultores-pastores-metalurgistas ligados às línguas bantas e ao aspeto físico, de cor de pele negra, que tanto os distinguem, como é bem sabido, dos anteriores.
Esse mundo, considerado pré-banto, é geralmente designado Khoïsan, para englobar todos os povos que utilizam na sua linguagem os famosos cliques ao pronunciarem as consoantes. Porém, essa é uma denominação externa a tais povos, uma vez que desde logo temos de aí distinguir dois grupos completamente diferentes (mesmo nas suas línguas), os Khoïkhoï ou Khoï, dedicados à pastorícia, e os San, recolectores-caçadores.
Os Khoïkhoï autodenominam-se assim (a sua designação é na verdade um pleonasmo, para enfatizar a ideia de homem, acabando por significar “homens dos homens”) com o fito de se diferenciarem a si próprios dos San, ou Sankhoï, como os designam.
O nome genérico Khoïsan foi atribuído a estes povos com “linguagem de cliques” – encarada de início como uma espécie de gaguejo – pelos primeiros colonos europeus, nomeadamente holandeses (e alemães, franceses, ingleses, etc.), os africâneres, ou bóeres, como se lhes chamava antigamente. É dessa noção de gaguejo que também deriva a designação pejorativa de Hotentotes por que tais povos eram conhecidos.
O livro aqui em causa, resultante da tese de doutoramento defendida na FLUL por Manuel Viegas Guerreiro, é sobre os San de Angola; os San são considerados como um povo autóctone, o mais antigo não só da África austral, como de toda a África, senão mesmo como uma “relíquia” da pré-história da humanidade. Não admira, assim, que este “povo” tenha desde há muito suscitado grande curiosidade por parte de estranhos, nomeadamente etnólogos, visitantes, etc. Bosquímanos (ou Bochimanes) é uma palavra hoje considerada pejorativa, derivada da designação de Bushman, “homem do mato”, que foi utilizada pelos colonizadores. Representariam a forma mais elementar de vida humana, uma vez que não “produziam” nada: apenas viviam num ambiente difícil, desértico ou muito árido, com base num conhecimento profundo desse ambiente, permitindo-lhes recolher (e subsidiariamente caçar) tudo o que é essencial à manutenção da vida humana.
Como é sabido, a noção de “selvagem” ou de “primitivo” está hoje totalmente banida da nossa linguagem, a par de qualquer “sintoma” de racismo ou de xenofobia, aliás ausentes da obra de Guerreiro, um homem animado pelo amor do conhecimento da diversidade humana, com aquela empatia pelo radicalmente diferente que sabemos não ser infelizmente atitude generalizada.
Quer a antropologia quer a arqueologia nos ensinam que o Homo Sapien spiens é, desde há milénios em que se expandiu para todo o globo, uma espécie altamente sofisticada, capaz de se adaptar a todos os ambientes, por mais extremos que sejam. E a própria noção de “civilização” é muito relativa, desde logo porque sabemos a complexidade do conhecimento prático que pressupõe a vivência em meios-ambientes extremos, sejam eles extremos pela aridez, pela humidade (florestas equatoriais com os seus Pigmeus, em África) ou pelo frio, como no extremo norte da Eurásia ou da América.
Por outro lado, se a vivência nestes ambientes, como é o caso dos San, resulta da necessidade de conservarem uma certa independência relativamente a comunidades tecnicamente mais apetrechadas, as quais muitas vezes os foram empurrando para essas “periferias”, também é certo que sabemos que a cooperação, o comportamento “altruísta”, a partilha, tendem a ser mais frequentes nas sociedades menos socialmente hierarquizadas. Não se trata de ressuscitar aqui nenhum mito de “pureza das origens”, mas antes de fazer fé naquele provérbio inglês tão conhecido: “a friend in need is a friend indeed.”
A prática da agricultura e da criação de animais domésticos (que alguns San, por aculturação, vão realizando em pequena escala para melhor fazer face a momentos mais difíceis) traz consigo a apropriação privada da terra, um bem inalienável, comum, para muitos caçadores-recolectores, a maior parte deles hoje confinados a “reservas” onde não podem de facto subsistir como seres portadores de uma experiência vivencial própria, que no caso dos San envolve, como em todos os seres humanos, representações, uma tradição artística (plasmada nas obras plásticas deixadas nas rochas pelos seus antepassados), música, danças, narrativas, etc. – tudo o que é próprio do universo simbólico a que se convencionou chamar cultura.
O curso da história mudou muito nas últimas décadas, tanto do nosso ponto de vista ocidental, como do ponto de vista das populações locais. Essas condições de vida “tradicionais”, no mundo contemporâneo, são precárias, e tendem a desaparecer numa sociedade capitalista neoliberal globalizada. Por isso voltar a este livro tem algo de nostálgico, mas também de um pouco doloroso: confrontamo-nos ao lê-lo (nas linhas e nas entrelinhas) com uma realidade que, como europeus, nos causa fascínio, foi observada com atenção e delicadeza por Manuel Viegas Guerreiro, mas está em transformação total: tem tido nas últimas décadas uma atenção inusitada[2], mas é evidentemente a atenção prestada, até certo ponto, a um resíduo, a uma realidade moribunda, ou a uma “peça de museu” – passe um certo exagero da metáfora…
Não tive a oportunidade de privar com o autor[3], mas li este seu livro sobre os Bosquímanos, no quadro do meu interesse por tudo quanto dissesse respeito às sociedades de caçadores-recolectores (e mais genericamente pré-estatais) e do estudo da antropologia cultural como complemento indispensável da pré-história a que me dediquei. Particularmente enquanto estudante da Faculdade de Letras de Lisboa, onde fui aluno de Orlando Ribeiro[4] – um dos mentores de M. V. Guerreiro, juntamente com Jorge Dias – preparando uma tese de licenciatura sobre as mais rudimentares técnicas de talhe da pedra que a humanidade conheceu; ora, os bosquímanos, ou San, apresentavam-se-me já então, estudante a dar os primeiros passos, como uma sobrevivência das mais antigas formas de subsistência dessa humanidade.
Nós, modernos, somos ávidos de passado, e particularmente de um tão longínquo, na nossa imaginação conservado em vestígios vivos ou objetais, que nos permita chegar às “origens”, perceber o “mítico começo” das coisas e dos homens e, como tal, o fundamento e razão da nossa própria existência. É isso que perseguem a antropologia cultural e a pré-história, entre outras, na sua roupagem e instrumentação de práticas científicas voltadas para o entendimento da verdade do absolutamente diferente, mas sempre com o desejo, ou pulsão, de estabelecer uma ponte entre nós, civilizados e em “mal-estar” (como Freud disse) e os “primitivos”, como dantes se dizia, os quais, no entender de Marshall Sahlins[5] em 1972, seriam a verdadeira “sociedade da abundância”.
Porque, argumentou o grande antropólogo norte-americano na sua obra hoje clássica, a “abundância” ou a “escassez” têm de se ver numa perspetiva relacional, numa articulação entre o que se deseja e o que se obtém. Ora, se nas sociedades da “Idade da Pedra” se desejava o pouco que se obtinha, nas nossas, permanentemente abundantes em novos objetos de desejo, nunca estamos satisfeitos com o que temos: de modo que somos nós quem, verdadeiramente, conhece a escassez. Claro que esta visão corre o risco de “edulcorar” fortemente o viver das mulheres e dos homens da pré-história, e dos seus supostos “sobreviventes primitivos” de hoje, que observamos com interesse e nostalgia. Por isso o geógrafo O. Ribeiro termina a sua resenha do livro em análise escrevendo sobre os bosquímanos estudados por M. V. Guerreiro: “Um povo que dificilmente poderá manter a sua poderosa individualidade quando, retirado do seu habitat inóspito, as condições de vida material se possam melhorar transformando-se profundamente. Está a ponto de perder-se uma das derradeiras relíquias da vida do Paleolítico superior. Por isso o seu estudo era urgente, e o geógrafo lerá com proveito esta cativante monografia.” (Ribeiro, 1970, p. 138).
Note-se apesar de tudo o otimismo deste último autor, ao aludir a uma “melhoria” das “condições de vida material”… quando, na verdade, o que temos, também aqui, é a inevitável extinção de formas de vida, de culturas se quisermos, e sua transmutação em realidades melhor ou pior integradas como exotismos na nossa própria mundividência globalizada de “ocidentais”. Era inevitável: fomos nós que inventámos a antropologia e a noção, agora já em desuso, de “povos primitivos”, e somos nós que de certo modo precisamos deles para completar o quadro das diferenças e semelhanças inerente à nossa racionalidade moderna: uma taxonomia que tem “horror ao vácuo”.

Vindo da tradição de Leite de Vasconcelos, Orlando Ribeiro, Jorge Dias, Manuel Viegas Guerreiro, cuja memória é hoje felizmente perpetuada também pela Fundação que tem o seu nome, dá-nos no seu trabalho de tese sobre os “Bochimanes” de Angola uma monografia que é dos melhores trabalhos de antropologia da fase colonial portuguesa, abordando com atenção e compreensão praticamente todos os aspetos que uma primeira abordagem a estas populações exige. Não abundam infelizmente os estudos assim, datados dessa época. Colmata pois uma lacuna importante, tanto mais que a realidade que descreve – atendendo à própria dinâmica interna das populações, que só nas “fotografias” com que as ilustramos nos parecem estáticas, fora da história, quando afinal estão longe de serem simples “relíquias” paradas no tempo – torna este tipo de trabalhos sempre urgente, necessário, precioso. Um património da humanidade, afinal.
Por isso também me cumpre agradecer à Fundação ter-me pedido este breve depoimento, ocasião de revisitar com gosto e proveito uma obra que marca uma data da antropologia portuguesa.
Alguma bibliografia [6]
- Barnard, Alan (2007), Anthropology and the Bushman, Oxford & Nova Iorque, Berg.
- Candido, Mariana P. (2022), Wealth, Land, and Property in Angola: A History of Dispossession, Slavery, and Inequality, Cambridge University Press.
- Estermann, Carlos (1956-1957-1961), Etnografia do Sudoeste de Angola, 3 vols., Lisboa, Junta de investigações do Ultramar.
- Guerreiro, Manuel Viegas (1968), Bochimanes !khū de Angola. Estudo Etnográfico, Lisboa, Instituto de Investigação Científica de Angola/Junta de Investigações do Ultramar.
- Kondja, José Evaristo (2022), Produção de Segmentos Consonânticos do Português por Falantes Nativos do !khun (Khoisan), Língua Angolana, dissertação de Mestrado em Ciências da Linguagem, Braga, Universidade do Minho. Link: https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/79672/1/Jose%20Evaristo%20Kondja.pdf
- Ribeiro, Orlando (1970), Bochimanes de Angola: M. Viegas Guerreiro, Finisterra, vol. 5, n.º 9, pp. 130-138.
- Sahlins, Marshall (2017 – 3.ª ed.; outras de 1972 e 2003), Stone Age Economics, Oxon & Nova Iorque, Routledge Classics.
- Smith, Andrew (2022), First People: the Lost History of the Koisan, Cidade do Cabo, Joanesburgo, Londres, Jonathan Ball Publishers.
[1] Sobre a conturbada história de Angola v, por exemplo a obra de Mariana Candido referida na bibliografia.
[2] Basta para tal consultar o excelente e atualizado resumo que vem na Wikipedia, em “San People”: https://en.wikipedia.org/wiki/San_people; também existem, na versão francesa da mesma Wikipédia, pequenas introduções esclarecedoras sobre o termo Khoisan, e sobre os povos Khoikhoi e San.
[3] Durante a minha frequência do curso de História na FLUL (1965-1972, incluindo tese final) foi a certa altura retirada pelo Ministério da Educação, do curriculum do curso, a cadeira de Etnologia, que tencionava frequentar como 3.ª opção (restaram apenas duas de Geografia, que tirei), e que, salvo erro, era então da responsabilidade de Manuel Viegas Guerreiro. No tempo em que fui assistente da Universidade de Luanda, Cursos de Letras (Lubango, antiga cidade de Sá da Bandeira – 1973-1974) tive a oportunidade de ver e ouvir alguns “bosquímanos” numa “tasca” de deserto, lá bem no Sul, onde aliás me foi comentado que o dono do estabelecimento, português branco, lhes costumava vender “vinho a martelo” (bebida alcoólica adulterada), procedimento habitual.
[4] Interessante o texto-resenha que este autor consagra ao livro, em 1970 (v. bibliografia); a sua leitura, excelente síntese, para a qual remeto o/a leitor/a, dispensa-me aqui de resumir o conteúdo desta obra de MVG.
[5] Cf. Sahlins, bibliografia.
[6] A bibliografia sobre o tema abordado por MVG e suas conexões é, neste momento, e como é sabido, numerosíssima. Restrinjo-me, pois, a algumas referências.