Um livro para instruir, moralizar e divertir a “classe” trabalhadora
POR PAULO JORGE CORREIA
O livro que aqui nos ocupa, Contos Populares Portugueses, é uma obra que Manuel Viegas Guerreiro (MVG) concebeu para ser uma antologia de contos de tradição oral portuguesa com o propósito de servir a “educação dos nossos trabalhadores” (p. 15). O livro é publicado em 1955, em Lisboa, na coleção “cultura e recreio” do gabinete de etnografia da FNAT (Fundação nacional para a alegria no trabalho), o atualmente renomeado INATEL.
Este trabalho parece ser uma encomenda desta instituição do Estado Novo concebida para ocupar o “tempo livre” dos trabalhadores assalariados com atividades culturais e recreativas. Por esta altura estava-se a desenvolver uma “campanha de educação de adultos”, com o objetivo de alfabetizar as massas trabalhadoras, e esta obra também é vista como um contributo para esse esforço, pois considera que tem de haver para estes “livros adequados à sua índole, compreensão e interesses [que] são a matéria indispensável sobre [o] que há-de exercer o novo conhecimento. Ora nenhuns textos como os populares satisfazem a estas últimas condições […]” (p. 14-15)
A escolha de MVG para a organização desta obra prende-se com o seu interesse pela Literatura Oral Tradicional (ele chamava-a de Literatura Popular), que o deliciou desde a sua infância na sua Querença natal: “Ainda me estão na lembrança as histórias magníficas de João de Calais, de Pedro Malas-artes, da Donzela Teodora e do Menino da mata e seu cão piloto, contadas na beira-serra do Algarve por gente de todas as idades.” (p. 8)
Se não me engano, este trabalho foi o primeiro de muitos outros no âmbito da etnografia e tradição oral. No mesmo ano que a obra foi publicada, MVG foi bolseiro, ajudando Leite de Vasconcellos na organização e publicação da sua monumental Etnografia Portuguesa, tarefa que o ocupou até 1989. A partir de 1970 tornou-se professor extraordinário de Etnologia na Faculdade de Letras de Lisboa,onde colaborou no Centro de Estudos Geográficos, nomeadamente com a criação da Revista Lusitana – Nova Série. Em 1978 publica um pequeno livrinho na “biblioteca breve” do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, intitulado Para a história da literatura popular portuguesa. Na década seguinte colabora na organização de dois colóquios sobre literatura popular, oral e tradicional em 1986 e 1987, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian. Lembramo-lo sobretudo como etnólogo, que para além dos estudos sobre a cultura popular portuguesa, desenvolveu também trabalho de campo no Brasil e em África onde fez importantes investigações sobre os bosquímanos de Angola e sobre os Macondes de Moçambique. A sua conceção de etnologia implicava sempre um capítulo sobre Literatura Oral.
Voltando ao livro que estamos a analisar aqui, MVG não o ocupa demasiado com a sua prosa, escrevendo apenas um breve prefácio (pp. 3-15) dividido em quatro capítulos.
No primeiro, tece algumas considerações sobre algumas teorias sobre a origem e difusão dos contos populares, não sem antes nos brindar com um magnífico parágrafo que mostra a natureza particular destas narrativas orais: “Os contos repetiam-se com simples modificações de pormenor ou sem elas em outros países, vizinhos ou distantes, com a mesma ou diferente língua, de raça igual ou diversa. E via-se também, em alguns casos, que a multidão das peripécias se associava do mesmo modo ao tema fundamental e que até eram idênticas, por vezes, as fórmulas de linguagem dos narradores”. (p. 4)
Segue-se um resumo breve das teorias: a Indo-europeia, ou mítica, defendida pelos irmãos Grimm e por Max Müller, a indianista defendida por Theodor Bentley, a etnográfica defendida por Andrew Lang e, por fim, a eclética de Gédéon Huet. Depois de comentar criticamente cada uma destas teorias, decide colocar-se ao lado da última, resumindo assim a sua posição: “Os contos são no geral antigos e muitos deles remontam ao tempo das milenárias civilizações orientais e clássicas. Não sendo trivial que seja exclusiva de um só povo a capacidade de criação literária teremos de admitir que os inventaram povos diversos em diferentes épocas da história humana e que os transmitiram uns aos outros principalmente por via oral.” (p. 7)
O segundo capítulo é dedicado aos contos populares portugueses e suas especificidades. Refere autores da literatura escrita que usaram os contos populares nas suas obras, como Gil Vicente e Gonçalo Fernandes Trancoso, considerando-os percursores da geração de finais do sec. XIX que chamou a si a tarefa de publicar, em livros ou revistas, os nossos contos tradicionais, à semelhança do que já se fazia um pouco por toda a Europa. São figuras como Teófilo Braga, Adolfo Coelho, Consiglieri Pedroso e Leite de Vasconcellos que são lembrados. Nota também que “dos estudos realizados se conclui que da maior parte dos contos portugueses se encontram versões em outros países e muito poucos são os que podemos considerar indiscutivelmente originais.” Este é um facto que qualquer investigador de Literatura Oral se apercebe logo: a universalidade da grande maioria dos contos tradicionais, sendo os “ecotipos” a exceção a esta regra. Surge então o problema da difusão dos contos, pois, se nós temos em Portugal contos narrados noutras geografias, de alguma forma eles chegaram até nós. MVG considera este problema no âmbito da área cultural indo-europeia: “Parece fora de dúvida que os contos e lendas de origem indiana nos foram transmitidos oralmente por árabes e judeus que em tempos passados viveram na Península.”
O terceiro capítulo trata do valor dos contos, sua dimensão lúdica, moral e educativa. Diz o autor que estas narrativas “advertem sem magoar, são a moral viva, em acção, o vasto palco da vida, onde cada um de nós representa e se sente repreendido, mas sem o perigo de se ver exposto a alheia zombaria.” (p. 11) Para além de serem repositórios onde foi acumulado “o saber do povo adquirido através de uma experiência milenária” (p. 12), os mesmos são “documentos importantes para o conhecimento da psicologia humana (…) de cada povo.” (idem). Também são vistos como instrumentos que potenciam capacidades humanas: “A memória desenvolve-se com ouvir e contar histórias; a inteligência apura-se decifrando enigmas e equívocos, penetrando o sentido de anedotas e ditos espirituosos; e a imaginação encontra largo campo de exercício nas fantásticas invenções dos contos maravilhosos.” (p. 13)
Por fim, o quarto e último capítulo trata do como e do porquê da organização desta antologia.
Passemos então à coletânea de contos. Ela é composta por 66 contos tradicionais, todos eles já publicados, respigados de autores que os publicaram entre finais do sec. XIX e 1920. Por ordem cronológica temos: Adolfo Coelho, Contos Populares Portugueses, 1879; Teófilo Braga, Contos Tradicionais do Povo Português, 1883; Cecília Schmidt Branco, Contos Populares Portugueses, 1895; Ataíde Oliveira, Contos Tradicionais do Algarve, 1900-1905; Consiglieri Pedroso, Contos Populares Portugueses, 1910; Maria da Conceição Dias, Tradições Populares do Baixo Alentejo, 1913; Bernardino Barbosa, Contos Populares de Évora, 1919; e Tomás Pires, Contos Populares Alentejanos, 1919. Para além destes autores também encontramos contos “literários” encontrados nas obras de Gonçalo Trancoso, Contos e Histórias de Proveito e Exemplo, 1624; e do Pe. Manuel Bernardes, Nova Floresta, 1706.
A ordem dos textos é arbitrária, como bem o diz o organizador da antologia.
Em termos geográficos, encontramos 12 contos da região Norte, 11 da região Centro, 1 de Lisboa, 7 do Alentejo, 29 do Algarve e 1 dos Açores. Claramente MVG privilegiou a região onde nasceu, usando para isso a coletânea de Ataíde Oliveira que, com cerca de 400 contos, é de longe a melhor das obras elencadas acima.
Passemos agora aos subgéneros. Encontramos 3 contos de animais, 28 contos maravilhosos, 9 contos religiosos, 10 contos novelescos, 1 conto do diabo estúpido, 13 contos jocosos e 2 contos formulísticos. Neste caso, os contos maravilhosos encontram-se claramente em maioria, sendo também os que mais têm interessado os folcloristas, devido à sua complexidade simbólica e narrativa. Chegamos a encontrar duas versões da mesma história, a História da Brancaflor, muito popular em Portugal (contos nºs 3 e 61). Certamente que estas escolhas assimétricas se devem, em parte, ao gosto pessoal de MVG. Mas creio que a razão principal seja ideológica. Só assim se compreende a penúria de contos de animais, nomeadamente os do ciclo da raposa e do lobo, tão populares que são, os contos formulísticos, que nem sequer elencam um Conto da Carochinha, que se tornou sinónimo de conto popular, e também os contos do ciclo de Pedro das Malasartes, que se enquadram na categoria dos contos do gigante (diabo) estúpido. Entende-se uma certa censura relativamente a estes contos, já que eles representam figuradamente a luta entre os que têm o poder e os mais fracos, onde os últimos, graças à inteligência e à manha, vencem os primeiros. Uma coletânea para a “classe operária”, em tempos de regime salazarista, teria de ser necessariamente concebida para reforçar a ordem e os bons costumes. Assim, os contos de animais escolhidos versam sobre problemas ético-morais (nºs 40, 62, 65) e o conto do diabo estúpido (nº 13), problemas familiares. A temática moralizante passa necessariamente pelos 9 contos religiosos e, em parte, também está presente nos novelescos. Por outro lado, seria de esperar que os contos jocosos (ou anedotas), fossem em menor número, pois é bem-sabido que muitas destas narrativas humorísticas são abertamente transgressoras, anticlericais, escatológicas ou obscenas. No entanto, se lermos as histórias selecionadas para esta antologia, verificamos que todas elas são inócuas. Como MVG bem frisou no final do prefácio: “Na escolha que se procedeu tivemos o escrupuloso cuidado de excluir não só as tipicamente infantis, mas quantas se julgaram inconvenientes a uma sadia formação moral.” (p. 15)
Sessenta e oito anos passados sobre a publicação desta obra, poderemos afirmar que esta pode ser lida com interesse por quem queira ter uma visão panorâmica dos contos da nossa Literatura Oral Tradicional. Todos os subgéneros estão representados, e as versões são provenientes de todo o país.