Manuel Viegas Guerreiro e Manuel Higino Vieira
Uma história de aventuras entre continentes e culturas
POR HENRIQUE VIEIRA
Manuel Viegas Guerreiro é um nome carismático quando se fala do seu trabalho de investigador, etnólogo, antropólogo, veículo de património material e imaterial entre continentes e culturas.
Trazemos agora, para partilhar convosco um percurso seu, integrador de todas estas facetas de acção e de teorização e que terá sido, provavelmente, um importante ponto de viragem, no seu percurso docente, ao possibilitar o contacto directo com novas culturas em contextos facilitadores de trocas e conhecimentos. A história que aqui vamos contar é a história de dois professores, distantes no espaço físico, coincidentes no tempo e na profissão. Por razões muito diferentes, ambos se apercebem que um decreto – lei do Ministério das Colónias, divulgado em todos os liceus da metrópole e do ultramar, publicado no Diário do Governo do dia 17 de Abril de 1948, poderá ir ao encontro das suas expectativas, do que cada um tinha desejado e acarinhado como percurso de vida profissional, ou como possível solução de um problema de saúde na vida de um casal.
Estes professores, Manuel Viegas Guerreiro, professor do Liceu Nacional de Faro, e Manuel Higino Vieira, professor do Liceu Diogo Cão da cidade de Sá da Bandeira, Angola, ambos do 1.º grupo do quadro dos liceus (disciplinas de Português, Latim e Grego), tornam-se, nesse ano de 1948, “Professores Permutantes”, uma categoria inovadora que veio possibilitar trocas e dinâmicas novas, construtivas para ambos os lados.
Serão ambos os protagonistas da nossa história. Mas falaremos também do professor permutante Mário Mora, que acompanhou, muito de perto, parte do percurso do professor Viegas Guerreiro, partilhando viagens, vivências, mas trazendo, para a breve história destes professores permutantes, uma narrativa própria e de muito interesse, que queremos, também, deixar registada.
Este artigo/narrativa, que pretende partilhar aspectos significativos desta aventura, será apresentado através de um discurso que se pretende contextualizador, enquadrador das personagens e das suas dinâmicas, que será enriquecido, continuamente, pelo resultado da recolha realizada pelo autor, no Arquivo e na Biblioteca do Liceu de Faro, hoje designado por Escola Secundária João de Deus. Assim sendo, entre a exposição, mais enquadradora e minimalista, bem como os esclarecimentos das notas de autor, será possível aceder, ainda, às palavras dos próprios protagonistas.
E, assim, viajar no tempo, através dos relatórios por si produzidos, ou esclarecimentos institucionais sobre cada um deles, trazidos sobre a forma de ofícios de diversas proveniências, essenciais na gestão desta permuta ou, ainda, outra documentação fundamental, como sejam o decreto-lei que criou o modelo/categoria de permuta, que tornou possível esta história, para nós muito emocionante, de aventura entre professores permutantes.
Vamos, então, começar por deixar “falar” o acervo e os documentos.
O decreto-lei e as autorizações
Ministério das Colónias, decreto-lei n.º 36.838:
«As providências constantes do presente decreto são inspiradas pelo intuito de fomentar o progresso dos serviços públicos por meio da melhoria profissional dos seus servidores (…)
Artigo 1.º O Governo, pelos Ministérios das Colónias e demais interessados, determinará a permuta de funcionários civis, de serviços congéneres da Metrópole e do Ultramar, para estágios voluntários por períodos não superiores a dois anos, com vista ao aperfeiçoamento das funções públicas e ao contacto com centros e estabelecimentos da Metrópole ou do Império Colonial Português.»
Diz-nos o artigo 2.º: «Os estágios de funcionários no Ultramar serão autorizados pelos respectivos ministros, mediante requisições individuais do das Colónias, que indicará, em cada caso, o funcionário colonial permutante para o correspondente estágio na Metrópole.»
Com o artigo 3.º evitaram-se muitas das actuais burocracias: «Os Ministros interessados nomearão os permutantes por despacho, isento de quaisquer outras formalidades, segundo as funções que vão desempenhar e para os serviços ou estabelecimentos a que se destinam.»
O artigo 6.º determina: «Os vencimentos dos permutantes serão abonados pelo orçamento do Ministério ou colónia em que vão servir e pela dotação correspondente à função a desempenhar, correndo porém pelos orçamentos coloniais todos os encargos de passagens e ajudas de custo…» (…)
Pelo Artigo 10.º, ficamos a saber que: «Os permutantes deverão apresentar ao Ministro das Colónias relatórios dos seus estágios nos três meses a seguir ao seu termo».
(…) «Publique-se e cumpra-se como nele se contém.
Para ser publicado no Boletim Oficial de todas as colónias.»[1]


Da folha do Registo Biográfico do professor Manuel Viegas Guerreiro, enquanto professor do Liceu de Faro, extraímos: «Autorizado a prestar serviço no Liceu de Sá da Bandeira, Angola, nos termos do Decreto n.º 36.838, de 17-4-1948, conforme os ofícios n.º 1.037, L.º 31, de 11 e 14 de Agosto, da D.G. do Ensino Liceal».
No Registo Biográfico do professor Manuel Higino Vieira, enquanto professor permutante no Liceu de Faro, está registado: «Por despacho de 28-7-1948 de Sua Excelência o Ministro da Educação Nacional, comunicado pelo ofício n.º 1.037, L.º 31, de 11-8-1948, da Direcção-Geral do Ensino Liceal, colocado como permutante neste Liceu, nos termos dos art.ºs 3.º e 6.º do Decreto n.º 36.838, de 17-4-1948. Foram-lhe distribuídas 22 horas de serviço semanal».
Manuel Viegas Guerreiro
«Foi em 1 de Novembro de 1912, no Cerro da Corte, freguesia de Querença, concelho de Loulé, que nasceu um rapaz, filho de Joaquim Guerreiro e de Inácia Gertrudes da Conceição, a quem foi dado o nome de Manuel Viegas Guerreiro.»[2]

Através do seu registo biográfico ficamos a saber que era licenciado em Filologia Clássica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com Exame de Estado para o magistério liceal do 1.º grupo. Exerceu a sua função docente, a partir de 2 de Outubro de 1939, no Liceu de Braga, passando depois pelo Liceu de Passos Manuel, Liceu de Lamego, Colégio Militar e Liceu de João de Deus, em Faro, onde é colocado como professor efectivo em 10 de Setembro de 1944, aí permanecendo até ao dia 19 de Agosto de 1948.
Vejamos, agora, o que nos diz o próprio professor Viegas Guerreiro no seu «Relatório de Estágio», publicado nos números 312, 314, 315/16, do Boletim Geral das Colónias/Ultramar, entre Junho e Outubro de 1951:
«Apresentado em 19 de Agosto de 1948, no Ministério das Colónias, segui em 20 para Angola e fiz a minha apresentação na Repartição Central dos Serviços de Instrução Pública, em Luanda, a 4 de Setembro. Em 12 do mesmo mês entrei no exercício das minhas funções no Liceu Diogo Cão, de Sá da Bandeira.»[3]
Em Angola o ano lectivo iniciava-se, nessa época, em 1 de Abril, pelo que o professor vai receber o horário e as funções que tinham pertencido ao professor Higino Vieira, substituindo-o, assim, nesse 3.º período lectivo.
Funções Docentes do professor Viegas Guerreiro:
«Língua e História Pátria – 2.º ano – Turma B – (36 alunos) – 5 horas
Português – 4.º ano -Turma A – (29 alunos) – 3 horas
Português – 4.º ano – Turma B – (29 alunos) – 3 horas
Português – 5.º ano – (28 alunos) – 3 horas
Literatura Portuguesa – 7.º ano – ( 3 alunos) – 5 horas
Por Ordem de Serviço do Sr. Reitor, de 2 de Outubro, fui nomeado director da Caixa Auxiliar dos Alunos do Liceu Diogo Cão e secretário do mesmo Liceu, por Portaria de 6 de Outubro de 1948, publicada no Boletim Oficial n.º 42, de 20 de Outubro.»[4]

Naturalmente que, ao longo do 3.º período, (em Angola, nesta época, de finais de Setembro até à segunda quinzena de Dezembro), é programado todo o serviço de exames. Os exames realizavam-se em Janeiro, decorrendo as provas orais até, o máximo, à segunda semana de Fevereiro. As “férias grandes”, normalmente de seis semanas, iam até ao final do mês de Março.
Voltemos ao relato do professor Viegas Guerreiro:
«Elaborei os Pontos de Exame escritos do 6.º ano de Português e os do 7.º ano de Latim; os pontos de Redacção da 1.ª chamada, 1.º turno e 2.ª chamada e o Ditado do 2.º turno da 1.ª chamada do Exame de Admissão. Fiz ainda o ponto de Português do 6.º ano e os de Latim dos 6.º e 7.º anos para os Exames da 2.ª Época.»[5]
Deixemos o professor Viegas Guerreiro gozar as suas férias e vamos então observar o que se passou com o professor Higino Vieira.
Manuel Higino Vieira
Nasceu a 7 de Outubro de 1913, em Câmara de Lobos, ilha da Madeira. Filho de Manuel Vieira e de Maria Augusta de Abreu. Licenciado em Filologia Clássica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com Exame de Estado para o magistério liceal do 1.º grupo. Foi professor nos liceus Jaime Moniz, no Funchal, Passos Manuel, em Lisboa, André de Gouveia, em Évora e Salvador Correia, em Luanda. Foi colocado como professor efectivo do 1.º grupo do Liceu Diogo Cão, em Sá da Bandeira, em 20 de Outubro de 1945.[6] Já registámos que foi dada a autorização para a permuta em 28-7-48 e o ofício, a comunicar tal facto, chegou ao Liceu de Faro em 11 de Agosto. O reitor do Liceu de Faro deve ter ficado preocupado com o facto de o professor Viegas Guerreiro ter ido para Angola em 20 de Agosto e de o seu permutante ainda não ter chegado a Faro dois meses depois. Pela consulta da correspondência expedida pelo Liceu de Faro, nesse ano de 1948, ficamos a saber o seguinte:
«Ofício N.º 788, de 20 de Outubro de 1948
Para: Director Geral do Ensino Liceal – Lisboa
“Para os efeitos convenientes, comunico a V. Ex.ª que, até esta data, não se apresentou ainda neste Liceu, o professor do Liceu de Sá da Bandeira (África Ocidental) MANUEL HIGINO VIEIRA, que ao abrigo das disposições legais, em vigor, sobre o assunto, trocou o seu lugar pelo prazo de dois anos, com o professor efectivo do 1.º grupo deste Liceu, MANUEL VIEGAS GUERREIRO.
Mais comunico a V. Ex.ª, que o professor MANUEL VIEGAS GUERREIRO, já seguiu para aquela nossa possessão ultramarina em 25 de Agosto.”»
Duas semanas depois, a 3 de Novembro, o ofício n.º 824, para a mesma Direcção-Geral do Ensino Liceal, diz-nos:
«Apresentou-se ao serviço neste Liceu ( 30 de Outubro), o professor efectivo do 1.º grupo do quadro comum dos Liceus Coloniais, MANUEL HIGINO VIEIRA, o qual será já abonado na folha de vencimentos do mês corrente (…)»
Breve nota sobre o casal e suas expectativas

«Manuel Higino Vieira e Laurência Edite Amado de Freitas, casam, por procuração, na Vila da Ponta do Sol, ilha da Madeira, casamento civil em 15 de Novembro e religioso em 27 de Dezembro desse ano de 45. (…) Laurência vai para Angola no paquete João Belo em Março de 1946 (…) chegam a Sá da Bandeira no dia 25, ficando temporariamente hospedados no Grande Hotel da Huíla. (…) O primeiro filho do casal nasce a 4/11/47 (…) e faleceu dois dias depois; o segundo filho é uma menina, nascida a 03/09/48, que só teve 24 horas de vida (…) Estas situações dramáticas, de possível consanguinidade, levam a que o casal, por diagnóstico médico, fosse aconselhado a recorrer a uma consulta urgente da especialidade, só possível na Metrópole.
A figura de permutante, que, como já referimos, surge em Abril de 1948, abre a possibilidade de o casal concretizar esta deslocação. Pelo que o professor Higino solicitou uma permuta, por dois anos, com um colega da metrópole, permuta essa que foi aceite pelo Dr. Guerreiro, professor do 1.º grupo do quadro docente do Liceu de Faro. O casal chega a Faro em Novembro de 48; no último fim de semana de cada mês iam a Lisboa (viagem de seis horas entre comboio e barco) para a gravidez ser acompanhada por um dos médicos da Maternidade Alfredo da Costa, especialista nestes problemas de consanguinidade.»[7]
O professor Manuel Higino Vieira recebe o seguinte horário semanal, nesse ano lectivo de 1948/49:
«Língua e História Pátria – 2.º ano – T.ª A (25 alunos) -Sec. – Mista
Língua e História Pátria – 2.º ano – T.ª B (26 alunos) – Sec. -Mista
Português – 3.º ano – T.ª B (27 alunos)
Português – 6.º ano – T.ª A (05 alunos)
Língua e Liter. Portuguesa – 7.ºano – Letras – (04 alunos).»[8]
Em 17 de Novembro, o reitor do liceu de Faro, envia o ofício n.º 889:
«Para: Director Geral do Ensino Liceal – Lisboa
“… o incluso requerimento, em que o professor (…) MANUEL HIGINO VIEIRA, requer (…) a concessão de 8 dias de licença graciosa (…) Confirmo o motivo indicado pelo requerente (…)»[9]
Mas, em 7 de Dezembro, pelo ofício nº. 954, ficamos a saber:
«Para: Director Geral do Ensino Liceal – Lisboa
“Em referência ao assunto do ofício à margem indicado, tenho a honra de transcrever a informação que me foi dada pelo professor efectivo do 1.º grupo, MANUEL HIGINO VIEIRA: «… que o médico especialista da Maternidade Dr. Alfredo da Costa, de Lisboa, Dr. Jorge Braz, me avisou de que o tratamento, que tanto eu como a minha mulher devemos fazer, é urgente, havendo a máxima conveniência em que seja feito imediatamente, antes de nova gravidez de minha mulher. Foi por isso que requeri a referida licença, mal nos instalámos em Faro.»
Outro ofício, datado de 15 de Dezembro (n.º 972), dirigido para a mesma entidade, tem o seguinte teor:
«… em serviço neste Liceu, MANUEL HIGINO VIEIRA, esta reitoria seja informada acerca da maneira de pagamento do subsídio especial a que se refere o art.º 6 do Decreto-Lei n.º 36.838 (…) A mesma dúvida subsiste quanto ao abono de vencimento (…) não ter ainda recebido, isto é, desde o dia 7 de Outubro, do ano corrente em que saiu de Luanda.»
Por este ofício ficamos a saber que Higino e Laurência saíram de Luanda – via marítima – para Lisboa, no próprio dia do 35.º aniversário deste professor.
Mário António da Cunha Mora
Um dos primeiros professores permutantes deve ter sido o Dr. Mário António da Cunha Mora, professor de Matemática, que temos de colocar nesta história, conforme já referido no início deste artigo, pois, nos dois anos lectivos de permuta, fez um em Luanda e o outro em Sá da Bandeira, deixando registado no seu relatório um conjunto de observações que complementam as do Dr. Viegas Guerreiro, nas suas vivências conjuntas[10].
Enquadremos, então, o Dr. Mora, nesta história, dando-lhe a palavra:
«… no dia 5 de Maio de 1948 parti para Luanda, acompanhado de minha mulher e do professor do Liceu de Aveiro, Dr. Euclídes Simões de Araújo, também na situação de permutante. A viagem foi feita num Dakota da T.A.P. com escala em Casa Branca, Vila Cisneros, Dacar, Robertsfield, Accra, Libreville e Luanda, tendo demorado 4 dias, num total de cerca de 33 horas de voo (…) Chegámos a Luanda no dia 8 e éramos esperados no aeródromo pelo Ex.mo Chefe dos Serviços de Instrução, Dr. Rafael Ávila de Azevedo e sua Ex.ma esposa; o Ex.mo Reitor do Liceu, Dr. Barros de Aguiar; e quase todos os professores desse estabelecimento de ensino.(…)
O meu colega Dr. Euclídes de Araújo seguiria para Sá da Bandeira, mas o meu permutante era o professor Dr. Soares Crespo, do Liceu Salvador Correia e, por isso, eu ficaria na capital da Província. [11]»

Vista aérea do Liceu Salvador Correia, em Angola
Vejamos, também, a impressão que o Liceu de Luanda, o Salvador Correia, provocou ao Dr. Mora:
«… Nunca supus, com efeito, que em Luanda encontraria o melhor edifício liceal português, excedendo em muito todos os que conheço, em Portugal, ou no estrangeiro. Visitei, há alguns anos vários liceus americanos e lá encontrei explêndidas condições de trabalho e grandes comodidades materiais, mas nenhum se comparava ao Liceu de Salvador Correia.[12]»
O professor Mora, também foi destacado para exames fora de Luanda e deslocou-se, integrado num dos júris de exames do 1.º ciclo e de Admissão aos liceus, para Malange e, depois, para a Gabela.
«Em 10 de Fevereiro de 1949, data prevista pela Lei, terminaram na Gabela os serviços de exames e, devidamente autorizado pelos Serviços, fui para Quibala descansar das fadigas de 16 meses de trabalho consecutivo (…) Foi ali, na Quibala, que me informaram do precário estado de saúde do meu colega Dr. Aníbal Rodrigues, do Liceu de Diogo Cão, em Sá da Bandeira, impossibilitado de permanecer nessa cidade, porque o especialista que o tratara exigia a sua permanência em Luanda (…); assim, propus particularmente aos Serviços a minha permuta com esse professor, o que foi aceite sem qualquer dificuldade. Ao regressar a Luanda, em princípios de Março, legalizou-se esta troca e, em 1 de Abril de 1949, parti de avião para Sá da Bandeira (…). O dia 1 de Abril é o primeiro do ano escolar dos Liceus de Angola; no momento em que descemos de um Dragon (da D.T.A) no campo de aviação de Sá da Bandeira, realizava-se no Liceu a sessão solene de abertura dos trabalhos escolares.
Muito nos custou não poder assistir a essa cerimónia e só ao cair da noite visitei, pela primeira vez, o Liceu de Diogo Cão. Como em Luanda, não pensei em alugar casa e hospedei-me no Grande Hotel da Huíla.[13]»
Momentos significativos dos permutantes
No momento em que o Dr. Mora e esposa chegam a Sá da Bandeira, 1 de Abril, onde estava o Dr. Viegas Guerreiro?
Demos-lhe, novamente, a palavra:
«Em 1 de Abril de 1949, na sessão de abertura das aulas, pronunciei uma palestra subordinada ao tema: A lição de Sócrates; e em 10 de Junho de 1950, dia de Camões, uma outra com o título de Vida e Obra de Camões.[14]»
Voltemos ao Dr. Mora:
«Em Sá da Bandeira, a situação da cidade e as condições de vida e da região logo nos permitiram, a mim e aos meus colegas Drs. Euclídes de Araújo e Viegas Guerreiro, ambos permutantes como eu, alargar consideravelmente o nosso conhecimento da Província, com a realização de algumas viagens de estudo.
S. Ex.ª o governador da Província, com uma captivante amabilidade, proporcionou-nos todas as facilidades para a realização deste desejo. E, por isso, em automóveis do Governo, visitámos os pontos de interesse dos arredores (durante as férias escolares): Escola Agro-Pecuária Dr. Vieira Machado, no Tchivinguiro, Estação Zootécnica da Humpata, Missão da Huíla, Missão do Jau, catarata da Unguéria e povoação da Chibia.[15]»


Terceira fila à direita, Dr. Higino Vieira.
E, nestes entretantos, o que se passa no Liceu de Faro?
Semana das Colónias – Liceu de Faro:
«À semelhança do que tem sucedido em anos anteriores, o Liceu deu a sua colaboração às comemorações da “Semana das Colónias”, contribuindo, para esse efeito, com uma conferência, realizada no dia 7 de Maio de 1949, no Ginásio do Liceu. Estavam presentes todos os professores e alunos, e foi orador o professor efectivo do 1.º grupo, Manuel Higino Vieira. Este professor, que pertence ao quadro comum dos liceus coloniais, e que está colocado no Liceu de Sá da Bandeira, encontra-se em serviço no Liceu de Faro, por permuta com o professor efectivo deste Liceu, Manuel Viegas Guerreiro. Por se tratar de um professor nestas condições, considerámo-lo particularmente qualificado para falar de colónias. O conferente dissertou largamente sobre vários aspectos da vida colonial, nomeadamente da vida em Angola, tendo procurado incutir no espírito dos alunos o gosto pela vida do ultramar.[16]»

Da esq.para a dir.: Casal Mora, Dr. Euclídes e casal Viegas Guerreiro junto a uma das carrinhas cedidas para as visitas de estudo.
No dia seguinte, mais precisamente a 11 de Junho, os alunos do 2.º ano masculino do Liceu de Faro fazem uma visita de estudo com o seguinte itinerário:
Faro – Ossonoba – Olhão – Cabo de Santa Maria – Faro. É director da visita, o director do 1.º ciclo, Luís de Ascensão Afonso e tem como assistentes os professores Higino Vieira e Francisco Prudêncio Júnior[17].
Já que estamos a falar de visitas de estudo, voltemos a Angola, a Sá da Bandeira, e ouçamos o Dr. Mora:
«Em dois outros passeios de estudo visitámos a Missão do Sendi, com o fim de ver indígenas Mucancalas, e depois o Posto Experimental do Caracul. Finalmente, nas últimas semanas de Setembro de 1949, visitámos as terras do Baixo Cunene, num admirável passeio de estudo que S. Ex.ª o Senhor Governador Geral nos proporcionou. Mais adiante me referirei a estas viagens com mais pormenor.[18]»
Os Mucancalas, também designados por Bochímanes, virão a constituir o cerne da investigação etnográfica do Dr. Viegas Guerreiro.
Supomos que esta visita tenha sido feita em finais de Junho, na interrupção das actividades lectivas entre o 1.º e o 2.º período escolar.
Voltemos ao relatório do Dr. Mora: «Numa fresca madrugada planáltica fomos à missão do Sendi, onde, graças à intervenção do Sr. Padre Carlos Estermann, se encontrava à nossa espera uma tribo de Mucancalas. Não mais esquecerei o que senti ao ver estes derradeiros representantes de uma raça que se extingue, com a sua débil constituição física, a sua cor amarelada, o seu «facies» típico, a carapinha em tufos e uma estranha fala entremeada de estalidos hábilmente produzidos pela língua. Interrogámos longamente alguns deles, por vezes através de intérprete, sobre a sua vida na selva, os seus interesses e as suas relações com os negros Bantos. Estou certo de que serei capaz de interessar um grupo de alunos liceais, durante mais de 3 quartos de hora, a falar-lhes desta raça estranha.[19]»


E o que se passa, entretanto, com o Dr. Higino Vieira, que, para além da sua expectativa profissional tem, também, quase concretizada a sua expectativa pessoal: a chegada do tão desejado bebé?
«Nascimento:
– Henrique Eduardo Amado de Freitas Vieira
– Filho de Manuel Higino Vieira e de Laurência Edite Amado de Freitas Vieira
– Nasceu no dia 8 de Agosto de 1949, às 6 horas e 50 minutos, na Maternidade Dr. Alfredo da Costa, Lisboa (na freguesia de S. Sebastião da Pedreira)
– Peso: 3 quilos e 300 gramas
– Altura: 50 cm (meio metro)
– Baptismo de emergência: Foi baptizado de emergência, às 15 horas e 30 minutos, do dia 8 de Agosto de 1949, dia do nascimento, na Maternidade Dr. Alfredo da Costa, pelo Dr. Padre César Teixeira da Fonte (madeirense) (…), na sala n.º 9 -pensionistas, cama n.º 1.
– Baptismo Solene: Foi baptizado solenemente na igreja de S. Jorge de Arroios, no dia 8 de Setembro, às 11 horas, dia de Nossa Senhora da Luz ou da Natividade (…)[20]»
Vinda para Faro: «No dia 20 de Setembro de 1949, veio para Faro, na companhia dos pais; viemos no “rápido do Algarve”, numa 3.ª feira; chegámos a casa – Rua Dr. Francisco Lázaro Cortes, n.º 25 – às 15 horas e 30 minutos [actual porta n.º 12]. O menino dormiu durante toda a viagem, com o balanço do comboio, acordando levemente, só nas paragens.»
– Pediatra: «No dia 22 de Setembro foi, com a mãe e com o pai, ao pediatra de Faro, Dr. Rogério Peres, a cujos cuidados o menino passou a estar (pesou 4 quilos e 512 gramas).[21]»
Deixemos, por agora, o bebé, em Faro, no seu crescimento, e voltemos rapidamente a Angola, pois, no dia seguinte, dia 23, vai iniciar-se uma importante etapa na vida dos casais Guerreiro e Mora, vejamos:
Viagem de Estudo ao Baixo Cunene (23 a 30 de Setembro de 1949), relatório do Dr. Mário Mora:
«(…) S. Ex.ª o Senhor Governador-geral concedeu-nos todas as facilidades de transportes e aproveitámos as férias de Setembro para realizar uma extensa viagem de cerca de 2.000 Kms. através do Sul de Angola.
O veículo utilizado foi uma ambulância, gentilmente cedida por aquela entidade, e que na ocasião se não encontrava ao serviço.
É um grande carro com quatro camas e outras comodidades muito apreciáveis para uma viagem daquele tipo, embora a sua velocidade pouco ultrapasse 40 kms. horários.
O cansaço e a saúde abalada não permitiram que o meu colega, Dr. Euclídes de Araújo se associasse a esta peregrinação, de modo que só eu e o colega permutante Dr. Viegas Guerreiro, acompanhados das respectivas mulheres, nos abalançámos a tentar a empresa.[22]»

Itinerário:
1.º dia – Sá da Bandeira – Quiteve
2º dia – Quiteve – Forte Roçadas
3.º dia – Forte Roçadas – Pereira d’ Eça
4.º dia – Pereira d’ Eça – Sudoeste Africano – Pereira d’ Eça
5.º dia – Pereira d’ Eça – Cuamato
6.º dia – Cuamato – Naulila
7.º dia – Naulila – Cahama
8.º dia – Cahama – Sá da Bandeira

A verde: a localização das missões católicas do Sul de Angola.
Relatório do Dr. Viegas Guerreiro
O Dr. Viegas Guerreiro descreve pormenorizadamente esta viagem incrível e a sorte que tiveram em presenciar no terceiro dia, quando da ida do Forte Roçadas para Pereira d’ Eça, na localidade da Môngua, a “Festa da Efundula” ou festa da puberdade das raparigas cuanhamas. A descrição dos pormenores desta festa, e respectivas justificações sociais, bem como a descrição do “eumbo”, aldeia indígena, onde se realizou parte da festa, mostra-nos já que fala o etnólogo, maravilhado que está com todos os pormenores destes hábitos e costumes dos povos cuanhamas[23].
No entanto, do relatório do Dr. Mora, extraímos esta maravilhosa narrativa: «Anoiteceu quando atingimos Quiteve, mas só parámos mais adiante, para acampar e dormir a 100 metros do grande rio. Na manhã do dia seguinte tivemos a felicidade de presenciar um dos mais belos espectáculos que a Natureza pode oferecer. Rodando lentamente junto às águas mansas do Cunene, por entre uma vegetação luxuriante coberta de flores, vimos milhares e milhares de animais que, tendo passado a noite junto à água, se encaminhavam para o refúgio do mato: eram antílopes de várias estaturas e tipos, galinhas do mato, javalis, cuios, zebras e muitíssimos outros, uns grandes e outros pequenos, uns rápidos na corrida e outros lentos, mas caminhando todos para poente, para o mato. Nos ares, não sei quantos pássaros de todos os tamanhos e feitios, desde bandos enormes de perdizes, até aos pesados palmípedes, muito volumosos e coloridos, levantando-se da frescura das mulolas em voos lentos e graciosos.[24]»
A descrição feita pelo Dr. Guerreiro, de «um dos mais belos espectáculos que a natureza pode oferecer» tem o seguinte teor: «A viagem, nas primeiras horas da manhã, junto ao rio, é a mais bela do percurso. Lagos silenciosos e de sonho empraiam-se ante os nossos olhos, rodeados de espesso canavial, povoado por uma fauna prodigiosamente rica, pluriforme e multicolor. Através deste panorama edénico, serpenteia o carro, rompendo as exalações docemente aromáticas dos mulavi, abertos em flores de cera, de um e outro lado da estrada. E, para que o pitoresco seja ainda mais forte e cheio de movimento, atravessam-se no caminho, fixam- se no chão, espantados, a olhar para nós, garbosamente, os elegantes olongos, as umpalas, os javalis e as irrequietas cabrinhas do mato. Mas o paraíso acabou-se. Vem a ardência dos raios solares e ainda por cima um importuno desvio para picada difícil, orlada de espinheiras cortantes que nos acompanham quase até ao Humbe.[25]»

No mês seguinte, em Outubro desse ano de 1949, inicia-se o ano lectivo 49/50 em Faro e, em Angola, veremos arrancar o 3.º período, do ano lectivo de 1949[26].
Fiquemos, então, um pouco por Faro.
Higino Vieira recebe, no seu horário as turmas A e B do 3.º ano, e, também, as turmas A e B do 5.º ano, na disciplina de Português, bem como a turma de Grego do 6.º ano e a de Língua e Literatura Portuguesa do 7.º ano[27].
Na correspondência expedida, entretanto encontramos a seguinte situação:
Para: Director Geral do Ensino do Ministério das Colónias
«Ref.ª v. ofício 3-042/49 de 23/11/949 (…) tenho a honra de enviar o trabalho do professor permutante em serviço neste Liceu, MANUEL HIGINO VIEIRA: “O ensino do Latim nos liceus em face do novo regime de estudos instituído pelo decreto – lei n.º 36.507” de que foi incumbido pelo Governo Geral da província de Angola.
Faro, 01 de Fevereiro de 1950.[28]»
E, ainda em Faro, o trabalho permutante continua:
«No dia 5 de Fevereiro foi em excursão liceal, (acompanhado pela mulher e pelo filho Henrique), com as turmas do 5.º ano, a Olhão, Tavira, St.ª Catarina, S. Brás de Alportel, Pousada de S. Brás, Estói e regresso a Faro, às 7h e um quarto da tarde.»
Também em excursão liceal, no dia 3 de Maio, foi à praia de Armação da Pêra, perto de Alcantarilha. «Partimos às 8h e 30m de Faro e passámos o dia todo na referida praia; regressámos às 20 h e 30m a Faro.[29]»
Voltemos, temporariamente a Angola, onde temos notícia de uma extraordinária aventura do Dr. Viegas Guerreiro: a caçada aos elefantes.
Não podemos deixar de mencionar, neste pequeno aparte, a caçada aos elefantes que foi proporcionada ao Dr. Guerreiro por um dos grandes caçadores profissionais do sul de Angola, o Sr. Pedro Carmo, com saída de Sá da Bandeira a 4 de Novembro e regresso a 6 desse mês. Nesta caçada participaram, também, os caçadores Paulo da Silva e Sebastião Ferreira, do Quipungo. Esta aventura vai possibilitar ao Dr. Guerreiro a realização de uma palestra, depois do seu regresso a Faro, no Ginásio do Liceu, a 20 de Janeiro de 1951, intitulada Como participei numa caçada aos elefantes[30].
Ainda em Angola, entre os dias 7 e 28 de Março de 1950, durante três semanas, o Dr. Viegas Guerreiro realiza uma excursão de estudo, incrível, tendo como pólo essencial a visita ao Museu da Diamang, no Dundo, e o contacto com os povos Quiocos.
Itinerários:
– Sá da Bandeira – Luanda (avião);
– Luanda (3 dias) – Malange (comboio)
– Malange – Duque de Bragança – Malange (jeep)
– Malange – Pungo Andongo – Malange (jeep)
– Malange – Nova Gaia (jeep- 150 Kms.)
– Nova Gaia – Dundo (camioneta de carga- 700 Kms.)
– Dundo – Vila Luso (camioneta de carga – 600 Kms.)
– Vila Luso – Silva Porto (comboio)
– Silva Porto – Sá da Bandeira (avião – via Nova Lisboa)
Descrição da viagem, fotografias, mapas e explanação sobre o povo Quioco, com lista dos objectos etnográficos adquiridos e oferecidos:
No seu relatório descreve-nos a viagem de avião, as suas impressões sobre Luanda cidade, aspectos sociais, para si relevantes, a Ilha de Luanda e a sua história; a viagem de comboio de Luanda a Malange, com descrição das localidades onde existem apeadeiros e dos principais produtos comerciais, muitas fotografias; Malange e seus arredores; visita a Pungo Andongo, terras da Rainha Ginga, quedas de Ielala, no rio Lucala (antigamente designadas por quedas do Duque de Bragança); de Malange para Nova Gaia, com a descrição das quedas dos Bem-Casados, no rio Mieje, afluente do Cubango, o vale de Cassanje, a sua economia e o seu povo, os Songos; os 700 quilómetros de Nova Gaia ao Dundo, através das terras dos Quiocos, chuvadas, cheias dos rios, barra da direcção da camioneta de carga partida, pontes que estão e que não estão; chegada a Saurimo e depois, finalmente, à vila do Dundo, onde, no Museu do Dundo, passou alguns dias com o seu conservador, o Dr. José Redinha[31].
Descrição dos hábitos e costumes dos Quiocos[32]; visita às explorações mineiras da Diamang:
«Pude ver em actividade a mina de Musseleje, e a de Catongula, do grupo de Andrada.[33]»
O regresso, iniciado no dia 24, com 600 quilómetros até Vila Luso, percorridos em dois dias, em picadas luxuosamente apelidadas de estradas. Viagem de comboio até Silva Porto, capital do Bié no dia 27; avião de Silva Porto para Nova Lisboa.
«Poucos minutos em Nova Lisboa. Um outro avião trouxe–me a Sá da Bandeira. Mau tempo. Nuvens, vento, chuva e bastante agitação nos ares em todo o percurso (…) mais 30 minutos e fica à vista a já para mim saudosa e querida cidade do Lubango (Sá da Bandeira), meta final desta célebre caminhada, fecunda em gozos e trabalhos, através de alguns milhares de Kilómetros.[34]»
No início desse novo ano lectivo, no Liceu Diogo Cão, em Abril de 1950, o Dr. Viegas Guerreiro recebeu o seguinte horário:
«Disciplina de Língua e História Pátria, 1.º ano turmas A e B (5+5) -10 horas.
Disciplina de Português – 4.º ano (uma turma) —- 3 horas.
Disciplina de Latim – 6.º ano —————————– 4 horas.
Disciplina de Grego – 6.º ano – ————————– 4 horas.
Continuando como director da Caixa Auxiliar dos Alunos e o cargo de director de Ciclo[35].»

Corpo docente do Liceu Nacional de Faro, 1950-1951. Última fila, o segundo à esquerda: Dr. Viegas Guerreiro
O Regresso do Dr. Mário Mora
«Aproxima-se o termo do estágio em Angola. Apesar das dificuldades em obter lugares nos barcos que se dirigem à Metrópole, a decidida acção do Ministério do Ultramar fez cumprir com precisão o que fora disposto sobre a data do regresso dos permutantes. Em fins de Abril saímos de avião para Moçâmedes, onde, a 30 de Abril, tomámos lugar no excelente paquete Pátria. Na nossa passagem por Luanda encontrámos, mais uma vez o nosso chefe dos Serviços e, depois de cumprimentar S. Ex.ª o Sr. Governador-geral, voltámos para o barco que nos trouxe para Lisboa, onde chegámos no dia 15 de Maio de 1950, dois anos e uma semana depois de termos saído.»[36]
O Regresso do Dr. Higino Vieira
Saída de Faro: «No dia 3 de Julho de 1950 saiu de Faro para Lisboa, embarcando para a Madeira no Lima com os pais, chegou à Ponta do Sol a 10 de Julho de 1950. Em Lisboa, no dia 6, fez uma visita de cortesia ao Dr. Constantino Esteves, médico pediatra que acompanhou o bebé nas primeiras semanas de vida. Pesava 11 quilos. O médico disse: “O Bebé singrou, podem voltar para África!”
(Ida do professor Higino a Lisboa para preparar o regresso a África – 30 de Setembro a 17 de Outubro.)
Embarque Naval: “A 18 de Outubro regressou ao Funchal e seguimos todos para África no paquete Pátria. Havia um temporal desfeito na baía do Funchal; às 10 horas da noite o bebé chegou no gasolina [barco que faz a travessia dos passageiros de terra para o paquete fundeado ao largo], com a mãe e a empregada Gabriela à escada do portaló do paquete Pátria. Veio ao colo de um marinheiro madeirense, todo agasalhado do frio e da chuva, vinha a chorar e a gritar pela mamã, mamã. Quando viu o pai a bordo, calou-se e começou logo a dormir com a cabeça encostada ao ombro do pai. Foi logo deitar-se no seu divã, no camarote (…)»


Laurência com Henrique ao colo e a empregada, Gabriela.
Chegada a Sá da Bandeira – “Chegámos a Moçâmedes a 31 de Outubro. Viemos de avião “Dragon” para Sá da Bandeira, a 2 de Novembro de 1950. Chegada 8 horas e 45 minutos.»[37]
Regresso do Dr. Viegas Guerreiro
Ainda antes do regresso do Dr. Guerreiro, já o transporte da sua colecção de objectos de arte africana, preocupava o reitor do Liceu de Faro, tendo este solicitado, a 8 de Junho de 1950, ao Presidente do Conselho de Administração da Companhia Colonial de Navegação e ao Presidente do Conselho de Administração da Companhia Nacional de Navegação que a «… colecção de objectos de caracter etnográfico… que o referido colega pretende trazer (…) possa ser transportada gratuitamente nos meios da Companhia…»[38]
O Dr. Viegas Guerreiro, falando do seu regresso, diz-nos o seguinte:
«Em 15 de Setembro deste ano de 1950 e fim do 2.º período dei as últimas aulas no Liceu Diogo Cão. Em 16 parti para Moçâmedes e em 18 embarquei no vapor Pátria com destino a Lisboa. Chegado a 2 de Outubro, nesse mesmo dia me apresentei no Ministério das Colónias e em 6 no da Educação. No dia 9 reiniciava, no Liceu de Faro, o exercício das minhas funções.»[39]
Tendo o Dr. Guerreiro chegado a Lisboa em 2 de Outubro e tendo-se apresentado no dia 6 no Ministério da Educação, deve ter havido a possibilidade de um encontro entre os dois permutantes já que Higino Vieira está em Lisboa na primeira quinzena de Outubro, tratando das burocracias para o seu regresso a Angola, que se iniciará no dia 17. Não possuo nenhuma referência documental sobre a concretização deste encontro, que me parece lógico mas, nas idas de Viegas Guerreiro a Angola, após 1957, verifica-se alguma proximidade entre os dois permutantes. Na verdade, pelo menos numa delas, foi Higino Vieira que o levou à Missão do Munhino, onde residia, à época, o Padre Carlos Estermann, pessoa muito importante para o trabalho etnográfico do Dr. Guerreiro.
Acrescente-se que o autor desta narrativa ia também na viatura, tendo recebido como oferta do Padre Estermann, um cesto com mangas e pêssegos, muito deliciosos!
Note-se, a título de curiosidade, que a viagem da família Higino Vieira se efectua na “torna viagem” do paquete Pátria que trouxe o Dr. Guerreiro, no seu regresso à metrópole.
Julgamos interessante, deixar, também, registado o que consta do Relatório do Reitor – 1950/51, sobre este assunto:
«O corpo docente do Liceu de Faro sofreu, no ano que findou, algumas alterações na constituição do seu quadro que nos parece oportuno registar neste ponto do presente relatório.
– O professor efectivo do 1.º grupo, Manuel Viegas Guerreiro, que se encontrava a prestar serviço no Liceu Nacional de Sá da Bandeira (África Ocidental Portuguesa), na situação de permutante provisório com o professor efectivo daquele Liceu, Manuel Higino Vieira (ao obrigo do decreto n.º 36.838), regressou à sua situação efectiva de professor do Liceu de Faro, no princípio deste ano lectivo. Nesta situação permaneceu até ao fim do 2.º período lectivo, data em que – por ter sido encarregado da revisão de livros – foi dispensado de todo o serviço lectivo, situação em que permaneceu até ao início da época de exames de Junho/Julho de 1951.»[40]
Resultados e Impactos
Revista Padrão
Regressado da sua estadia como professor permutante na metrópole, vai coordenar a criação de uma publicação trimestral dos alunos do Liceu Diogo Cão, tendo em vista fazer circular informação, cultura, eventos significativos, facilitando a comunicação com outras instituições educativas do espaço português. No dia 29 de Dezembro de 1950 é editado o n.º 1 da revista Padrão.

No contexto das atividades de permuta desenvolvidas e já referidas, é interessante salientar, aqui, um pequeno texto, intitulado Liceus Metropolitanos, publicado na revista n.º 3, datada de 30 de Junho de 1951, pág.15, que evidencia a boa relação institucional e pessoal que se estabeleceu entre os Liceus de Faro e de Sá da Bandeira. Vejamos, então, o que nos diz o texto:
«De entre os liceus da Metrópole, aquele com quem mantemos melhores relações de amizade e intercâmbio escolar é, sem dúvida, o Liceu Nacional de Faro, capital da pitoresca província do Algarve. De lá nos veio o Dr. Manuel Viegas Guerreiro, por dois anos, que muito se dedicou à etnografia angolana, em permuta com o professor orientador desta revista liceal. Está prestes a realizar-se outra permuta entre o nosso querido Reitor, Dr. Ramalho Viegas e o ilustre professor do Liceu da capital algarvia, Dr. Manuel Aleixo da Cunha, ex-assistente de Biológicas, da Faculdade de Ciências de Coimbra (…) Em homenagem ao Liceu Nacional de Faro (com um abraço afectuoso aos bons amigos, que lá deixámos e com votos de boa viagem e feliz regresso ao nosso Reitor), aqui publicamos a fotogravura daquele modelar estabelecimento de ensino, um dos edifícios liceais mais recentes da Mãe-Pátria.»
Uma pequena nota final, só para referir que o Dr. Higino Vieira se manteve como professor orientador da referida revista ao longo de três anos, até ao seu n.º 9, em 15 de Dezembro de 1952.
Dr. Guerreiro após o regresso a Faro
Do relatório do reitor do Liceu de Faro, referente ao ano lectivo de 1950/51, extraímos os seguintes excertos:
Palestras – «15 de Janeiro de 1951 – Sessão Cultural
Foi orador o professor efectivo do 1.º grupo, Manuel Viegas Guerreiro que tomou por tema – descrição de uma viagem que fez através de Angola, durante o tempo em que nesta província ultramarina permaneceu como professor permutante.
Presidiu o reitor e assistiram os professores e alunos.»
(…)
20 de Janeiro de 1951 – Sessão Cultural
Foi orador o professor efectivo do 1.º grupo, Manuel Viegas Guerreiro, que dissertou àcêrca duma caçada aos elefantes a que assistiu.
Presidiu o reitor e assistiram os professores e alunos.»[41]
(..)
Semana das Colónias – «De colaboração com a Sociedade de Geografia organizou, nêste ano, o Liceu de Faro a Semana das Colónias com o seguinte programa: 9 de Maio de 1951 – Palestra destinada aos alunos dos 1.º, 2.º e 3.º subordinada ao tema Por terras de Angola e proferida pelo professor Manuel Viegas Guerreiro.»[42]
Sala de Angola – «A 15 de Maio de 1951 realizou-se uma Palestra destinada aos alunos e alunas de todos os anos e aos professores, com o tema Progresso Espiritual de Angola, proferida pelo missionário das Missões do Espírito Santo Reverendo Padre Dr. António Duarte Brázio (…)»
Ainda nesta data, e depois da conferência referida anteriormente, o reitor convidou os presentes a assistirem à inauguração da Sala de Angola. Esta sala que se encontra repleta de belas colecções de objectos coloniais, tais como: (…) é presentemente, talvez o compartimento mais precioso do Liceu, e o seu recheio deve-se inteiramente à devoção ao seu Liceu do professor efectivo do 1.º grupo Exm.º Senhor Dr. Manuel Viegas Guerreiro, a quem pela gentileza de uma tão magnífica oferta são devidas nesta parte do nosso relatório os nossos melhores agradecimentos.
Um tal gesto do Sr. Dr. Viegas Guerreiro já mereceu da parte do Govêrno a apreciação devida, que, a propósito, decidiu louvar publicamente aquele ilustre professor.»[43] (Ver Diário do Governo, n.º 157, II série, de 10 de Junho (sic) de 1951).
Conclusões reflexivas
A narrativa que temos conduzido até aqui, é feita de encontros do passado que se vieram a reflectir no presente com grande impacto e emoção.
É neste contexto que, no dia 13 de Maio, deste Ano da Graça de 2023, foi inaugurado e reactivado o Núcleo Museológico do Lyceu de Faro, na actual Escola Secundária João de Deus, constituído por objectos e arte africana trazidos pelo Dr. Viegas Guerreiro em 1950 e que, agora, 73 anos depois, são testemunho do impacto desta aventura do passado, trazida para o presente.
É também neste encontro com o passado e neste caminho de permuta que sabemos da história do casal Higino Vieira e do desfecho feliz da sua motivação inicial para a permuta: poderem ter um filho saudável e poderem regressar a Angola. Assim aconteceu! Em 8 de Agosto de 1949 nasce o bebé! Em 5 de Julho de 1950, o pediatra que, em Lisboa, acompanhou o processo, comunica aos pais: «O Bébé singrou! Podem voltar para África!»
Essa pessoa que nasceu em Agosto de 1949 ,viveu o seu primeiro ano de vida em Faro e chegou a Sá da Bandeira em 2 de Novembro de 1950, é a mesma que, 73 anos depois, em Agosto de 2023, sendo professor de História e vivendo em Faro, vos narra, resumidamente, as aventuras de dois professores permutantes nos idos de 1948, 49 e 50.
Nota do autor: O Boletim Geral das Colónias, publicado pela Agência Geral das Colónias, tem esta designação até ao n.º 312. A partir do n.º 314 apresenta a designação de Boletim Geral do Ultramar e é editado pela Agência Geral do Ultramar. Nesta narrativa serão referenciados pelas abreviaturas BGC e BGU.
[1] Diário do Governo, I Série, n.º 89, Sábado, 17 de Abril de 1948.
[2] Manuel Viegas Guerreiro: Fotobiografia, pág. 10.
[3] BGC, n.º 312, pág. 29.
[4] BGC, n.º 312, pág. 29 e 31.
[5] BGC, n.º 312, pág. 31.
[6] Histórias e Memórias do Liceu Diogo Cão, pág. 238.
[7] Histórias e Memórias do Liceu Diogo Cão, págs. 238 e 239.
[8] Rel. Reitor – 48/49, fls. 25 e segs.
[9] Correspondência expedida, Liceu de Faro 1948.
[10] Relatório publicado no n.º 322, Abril de 1952, do Boletim Geral do Ultramar.
[11] BGU, n.º 322, pág. 21 e 22.
[12] BGU, n.º 322, pág. 22.
[13] BGU, n.º 322, pág. 24.
[14] Rel. V. Guerreiro – BGC, n.º 312 , pág. 45.
[15] Rel. Dr. Mora – BGU, n.º322, págs. 24 e 25.
[16] Rel. Reitor – 48/49, fl. 70.
[17] Rel. Reitor – 48/49, fl. 75.
[18] Rel. Dr. Mora – BGU, n.º 322, págs. 25 e 26.
[19] Rel. Dr. Mora – BGU, n.º 322, págs. 30 e 31.
[20] Álbum História do Bebé.
[21] Álbum História do Bebé.
[22) BGU, n.º 322, pág. 32.
[23] BGU, n.º 314, págs. 62- 97.
[24]BGU, n.º 322, págs. 32 e 33.
[25] BGU, n.º 314, pág. 69.
[26] Na Revista de Ensino, n.º 1, dos Serviços de Educação do Governo de Angola, editada em 1950, vem publicado nas pp 21-34 o Relatório da Excursão de Estudo realizada de 23 a 30 de Setembro de 1949, pelo professor permutante Dr. Viegas Guerreiro.
[27]Rel. Reitor – 1949/50. fl. 36.
[28] Ofício. n.º 98 (11) G..
[29]Álbum História do Bebé.
[30] Pelas fotografias de uma “caçada aos elefantes”, publicadas em Manuel Viegas Guerreiro: Fotobiografia», pág. 87, fica-nos a impressão que também participou numa outra caçada, no mês de Setembro de 1950, dias antes do seu regresso à metrópole.
[31] O Dr. Redinha viria a ser, em 1974, professor de Antropologia Cultural no curso de História, da Faculdade de Letras da Universidade de Luanda, tendo sido professor do autor deste artigo.
[32] Na Revista de Ensino n.º 2 , de 1951, editada pelos Serviços de Educação do Governo de Angola, a páginas 135 a 137, vem publicada, a parte do relatório do Dr. Guerreiro, onde descreve os hábitos e formas de vida dos Quiocos.
[33] Rel. Viegas Guerreiro, pág. 104.
[34] Rel. Viegas Guerreiro, pág. 108, in BGU n.º 315/316, págs 33-110.
[35] BGC n.º 312, pág. 53.
[36] BGU n.º 322, pág. 27.
[37] Álbum História do Bebé.
[38] Ofícios 522 e 523 (471) G de 8 de Junho de 1950.
[39] BGC, n.º 312, pág. 33.
[40] Rel. Reitor – 1950/51, fls. 49.
[41] Rel. Reitor – 1950/51, fl. 105.
[42] Rel. Reitor – 1950/51, fls. 105 e 106.
[43] Rel. Reitor – 1950/51, fls. 106 e 107.
FONTES DOCUMENTAIS
Bibliografia
Estermann, Carlos – (1983) – Etnografia de Angola – Ed: Instituto de Investigação Científica Tropical – Lisboa – 1983.
Ferreira, Francisco Melo – (2006) – Manuel Viegas Guerreiro – Fotobiografia – Ed: Fundação Manuel Viegas Guerreiro – Querença – 2006.
Guerreiro, Manuel Viegas – «Relatório do Estágio realizado no Liceu Diogo Cão, de Sá da Bandeira, pelo professor permutante do Liceu de Faro, Manuel Viegas Guerreiro» – Primeira Parte – Boletim Geral das Colónias – Ed: Agência Geral das Colónias – n.º 312 – Junho de 1951.
Guerreiro, Manuel Viegas – «Relatório do Estágio realizado no Liceu Diogo Cão, de Sá da Bandeira, pelo professor permutante do Liceu de Faro, Manuel Viegas Guerreiro» – (continuação) – Boletim Geral do Ultramar – Ed: Agência Geral do Ultramar – n.os 314 e 315/16 – Agosto e Setembro/Outubro de 1951.
História do Bebé – Álbum – (1949/52) – Biblioteca particular de Henrique Vieira.
Mora, Mário António da Cunha – «Relatório do Estágio realizado em Angola pelo professor dos liceus da Metrópole Sr. Mário António da Cunha Mora» – Boletim Geral do Ultramar – Ed: Agência Geral do Ultramar – n.º 322 – Abril de 1952.
Relatório do Reitor – Liceu de Faro – Anos de 1948/49, 1949/50 e 1950/51 – Arquivo: Reitor Teixeira Guedes – Biblioteca da Escola Secundária João de Deus.
Vieira, Henrique (Higino) – (2022) – (coordenação de) – Histórias e Memórias do Liceu Diogo Cão, da Academia da Huíla e do Reino de Maconge – Ed: Reino de Maconge – Lisboa / Lubango.
Acervo Fotográfico
Álbum História do Bebé – (1949/1952) – Arquivo pessoal do autor.
Boletim Geral do Ultramar.
Fundação Manuel Viegas Guerreiro.
Arquivo Reitor Teixeira Guedes, da Biblioteca da Escola Secundária João de Deus.
Correspondência Expedida
Arquivo do Liceu de Faro / Escola Secundária
João de Deus – 1948, 1949, 1950, 1951.
Mapas
Bantos do Sudoeste de Angola – Mapa na escala; – 1: 3 000 000 – A vida Económica dos Bantos do Sudoeste de Angola – pgs. 18/19 – Ed: Junta Provincial de Povoamento de Angola – Luanda – 1971;
Mapa na escala; – 1: 4 000 000 – Angola, Província de Portugal em África – pág. 8 – Ed: Direcção dos Serviços de Economia – Luanda – 1953.