Um trabalho imprescindível para o estudo de Portimão e do Algarve
POR MARIA JOÃO RAMINHOS DUARTE
Com a finalidade de valorizar o acervo do Centro de Estudos Algarvios, recebi da Fundação Manuel Viegas Guerreiro um desafio para que fizesse um ensaio, comentando o livro Portimão de Joaquim António Nunes. Aceitei o repto, feliz por contribuir para a continuação do trabalho do Engenheiro Luís Guerreiro na preservação da história e memória algarvia, mas também porque nos meus estudos eu já me debruçara sobre o regionalismo algarvio, tema muito grato ao nosso Engenheiro; estudara a sua génese e evolução no século XX e, por essas andanças, cruzara-me com Portimão e com o seu autor, Joaquim António Nunes, já em idade muito avançada, mas com uma lucidez e memória excelentes!
Descobri-o em Lisboa, num prédio às Amoreiras, e lá fui eu, munida de gravador, entrevistar um dos Grandes do regionalismo algarvio. Surpreendeu-me um homem franzino, de pequena estatura, que se agigantava quando falava de Portimão, do Algarve e da sua “Casa”.
Joaquim António Nunes nasceu em 1905, em Vila Nova de Portimão, filho de quinteiros no Morgado do Reguengo. Os trabalhos agrícolas ocuparam-no e só começou a aprender as letras aos 13 anos. Fez a segunda classe e iniciou a aprendizagem do ofício de torneiro mecânico na Litografia de Júdice Fialho, o maior industrial portimonense. Nunes, desde cedo, demonstrou grande interesse pelo estudo. Os jornais operários e os livros das associações foram para ele uma verdadeira escola. Este autodidacta leu todos os clássicos que marcaram a sua geração.
Nos anos 30, o Algarve atravessava uma grave crise de falta de trabalho, com as fábricas a laborar somente dois ou três dias por semana. A contestação operária fez-se sentir e os companheiros de Nunes foram presos pela PVDE em finais de 1933. Ele escapou a essa leva, mas temia não escapar à seguinte.
Entretanto, o seu irmão arranjou-lhe trabalho em Lisboa e ele mudou-se, em 1934, para a capital, já casado e com dois filhos. Gorada a primeira oferta de trabalho, Nunes concorreu às oficinas da Administração do Porto de Lisboa, tendo sido admitido. Terminou a instrução primária e seguiu o ensino industrial nas Escolas Fonseca Benavides e Marquês de Pombal. Pretendia fazer o Curso de Engenheiro Auxiliar, que não concluiu. Abandonados os estudos, iniciou a sua colaboração nos jornais do Algarve.
Nunes continuou a exercer funções na Administração do Porto de Lisboa, onde fez a sua carreira ao longo de 40 anos de serviço. Foi chefe dos Serviços de Depósitos e o primeiro a organizar a sua Casa do Pessoal. “O Nunes do Depósito” era conhecido de todos.
Em todo o processo da actividade associativa regionalista algarvia, destacara-se Mateus Martins Moreno, um algarvio de Faro. A ele se deveu a concretização do desejo mais antigo dos algarvios, o estabelecimento dum centro na capital: a Casa do Algarve, em 1930.
Joaquim António Nunes teve em Moreno um bom mestre e seguiu-lhe os passos. Dominado pela nostalgia do Algarve, Nunes desenvolveu um intenso trabalho no associativismo regionalista. Pensou em ressurgir a Casa do Algarve, que declinara, encerrando paulatinamente a sua actividade no início da década de 40. Nunes foi a figura de proa da refundação da Casa do Algarve; foi o grande entusiasta e organizador; fez a angariação dos algarvios, através da sua inscrição em listas espalhadas por toda a capital, a fim de reunir elementos para nomear uma comissão organizadora, que tomou o nome de Comissão Pró-Organização da Casa do Algarve. Essa comissão debateu as causas que tinham levado à decadência da primeira Casa do Algarve, concluindo-se que se dera uma má prova de regionalismo e de associativismo dos algarvios. Nunes trouxe à causa os jornalistas, os escritores, os políticos e todos os algarvios que podiam, de algum modo, ajudar à sua concretização.
Nunes iniciou a sua actividade literária ao mesmo tempo que a regionalista e a sua obra constitui uma fonte fundamental para a história e evolução do regionalismo algarvio. Em 1956, Nunes publicou Portimão, o seu primeiro livro, uma elucidativa monografia de Portimão, a sua terra natal. O livro integrou a colecção “Estudos algarvios” da Casa do Algarve e dá-nos um retrato muito completo de Portimão, dos seus lugares, da sua história, da sua cultura, da sua economia e ainda dos homens cuja vida animaram essa terra. É um trabalho imprescindível para o estudo de Portimão e do Algarve, acompanhado de gráficos, tabelas e mapas, feito com grande rigor histórico.
Quando deu por terminada a tarefa de ressurgimento da Casa do Algarve, que criou a partir do zero, Nunes publicou o seu sexto livro Regionalismo, Cultura e Turismo (1989), onde nos retrata o movimento regionalista algarvio. Nunes publicara anteriormente Jornais, Homens e Factos de Portimão (1962), onde fez uma inventariação e descrição da imprensa portimonense e dos seus mentores, jornalistas e tipografias. A admiração, uma verdadeira adoração, por Manuel Teixeira Gomes fê-lo publicar o ensaio Da Vida e da Obra de Teixeira Gomes (1976). E são ainda da sua lavra Imagens de Lisboa (1976); Crónicas Intencionais (1991) e Temas do meu Rosário (s.d.).
A sua colaboração encontra-se dispersa em muitos jornais de Lisboa, do Porto e Monção e na imprensa regional algarvia. Nunes foi também director e editor de Algarve, o boletim informativo da Casa do Algarve, em Lisboa.
A Casa do Algarve teve sempre instalações “provisórias”, deambulando por vários imóveis de Lisboa. Apesar disso, a instituição atravessou tempos áureos, com Joaquim Nunes à frente da sua direcção, promovendo uma vida social e cultural intensa em benefício dos algarvios da capital: exposições, palestras, visitas, comemorações de vultos algarvios e de efemérides etc. Nunes deu vida à “Casa”, granjeando-lhe um prestígio superior às suas congéneres.
Por isso, a “Casa” também teve um grande papel no desenvolvimento do Algarve, pois actuou como um verdadeiro lobby para a fundação do Conservatório Regional, do Aeroporto de Faro e da Universidade do Algarve. Como Presidente da Casa do Algarve, Nunes realizou o II Congresso Regional Algarvio, em que se identificaram as necessidades da região e as respectivas soluções.
O Estado Novo percebera a força regionalista, pelo que aceitara a existência da Casa do Algarve, tentando, reduzir a sua capacidade interventiva e reivindicativa através da sua normalização e ritualização de cerimónias nacionalistas, onde a região funcionava como uma “mini pátria”. Na cortesia das instituições permitidas pela ditadura, o regionalismo foi legitimado, em contexto nacionalista, mas simultaneamente despojado da sua força política e reduzido ao nível simbólico e a pacíficas actividades artísticas, culturais e sociais.
No entanto, apesar de a Casa do Algarve se subordinar ao ideário do Estado Novo, a associação deu cobertura a muitos oposicionistas algarvios e divulgou o trabalho de muitos seus associados inimigos figadais do regime ditatorial. Segundo Nunes, a PIDE vigiava atentamente as reuniões da associação regionalista, relatando o facto de muitos dos seus sócios serem “subversivos” e os cargos directivos estarem pejados de oposicionistas.
Nunes adquiriu larga experiência na direcção da Casa do Algarve, estando à frente de todos os combates pelo Algarve, durante 36 anos. Só quando, em 1981, foi atribuído à “Casa do Algarve”, o Estatuto de Utilidade Pública, por que ele tanto lutara, a sua luta regionalista findou. Nunes foi nomeado Presidente Honorário, mantendo-se até à sua morte como o sócio n.º 1 da Casa do Algarve.
Por incúria e para desgraça dos algarvios, com ele morreu a sua e a nossa “Casa”.