Pai, o pimo ís não vem hoje a noxa caja?
POR JOÃO MANUEL DA SILVA MIGUEL
Começou setembro, na família era mês de aniversários, que já não se celebram.
O do Luís Guerreiro, o meu primo Luís, era um deles, logo no dia 4, no dia seguinte ao do meu pai.
Todos os anos, o parabenizava e todos os anos a data ressoa na memória, numa recordação sentida de perda.
Estes anos passados sem a sua presença, não esboroaram a recordação, que continua viva.
O Luís era uma pessoa única. Mais do que primo, um irmão, a quem se quer muito.
Na sua dimensão pública, a Wikipédia titula-o de historiador, engenheiro – o engenheiro das letras, como foi conhecido -, jornalista e técnico da Câmara Municipal de Loulé, onde trabalhou, cerca de quatro décadas, e deixou a sua marca.
Não relembrarei o quanto se lhe deve pela visão que teve, de, com outros, concretizar e pôr de pé na sua aldeia natal a Fundação Manuel Viegas Guerreiro – a menina dos seus olhos -, e como presidente do seu conselho de administração ter sido um dos principais impulsionadores de iniciativas culturais por ela promovidas, dignificando-a e elevando o nome de Querença, como o Festival Literário Internacional de Querença e o Centro de Estudos Algarvios, este, num acervo de quase dois mil volumes sobre o Algarve, reunidos ao longo de décadas, seguramente o maior e mais bem documentado sobre a região, disponível para a academia e quem o quiser consultar.
Também não relembrarei a sua atividade de jornalista, como diretor, colaborador e responsável editorial de A Voz de Loulé, órgão da imprensa escrita local, que levava à diáspora portuguesa o sentir e o pulsar das origens.
Não falarei do seu trabalho de técnico nem da sua atividade de historiador apaixonado por estórias da História e de locais, numa permanente curiosidade investigativa na Biblioteca Nacional e na Torre do Tombo, recolhendo informação sobre os assuntos que lhe interessavam.
Também não falarei da sua formação como piloto aviador da Força Aérea, faceta que será menos conhecida de todos, numa carreira militar promissora que abandonou, seguramente por falta de vocação, seguindo depois a engenharia civil, que pouco exerceu.
Um dos primeiros e poucos trabalhos que efetuou na profissão liberal de engenharia foi uma piscina de um familiar, que ainda existe e resiste à erosão do tempo.
Gostaria apenas de celebrar o peso e a expressão dos afetos na relação que a todos nos unia.
A lembrança de pequenos nadas que nos marcam a vida e a memória, e a que nem sempre damos o valor merecido.
A minha filha Inês, que não privava facilmente com qualquer pessoa, tinha uma especial predileção pelo Luís, o «pimo ís», como lhe chamava quando dava os primeiros passos na aprendizagem da fala.
Dizíamos que uma possível explicação vinha de ela ter nascido num fim de semana em que o Luís tinha ficado em nossa casa e acordara na manhã de domingo, sozinho, por termos sido chamados pelas urgências da maternidade que madrugara.
Adorava o Luís e ele tinha aquele jeito, que herdara do pai, de fascinar os pirralhos.
Aos fins de semana, a pergunta ecoava: «Pai, o pimo ís não vem hoje a noxa caja?»
Era uma alegria.
E assim é recordada. E o recordamos.
A memória da ausência humedece-nos os olhos, aperta a garganta e embarga a voz, mas não apaga os belos momentos dos pequenos nadas que nos enchem a alma e que guardamos para sempre, com eles celebrando a vida neste dia, que seria o do seu aniversário.
Querença, 4 de setembro de 2024