A educação de adultos em comunidades rurais
Uma lição de Mestre
POR MARIA PRISCILA SOARES
O presente artigo não é propriamente um comentário sobre a contribuição do Professor Viegas Guerreiro A educação de adultos em comunidades rurais – actividades comunitárias para um curso sobre Educação de Adultos, organizado pela Universidade do Minho, entre Janeiro e Abril de 1978.
Dada a insuficiente divulgação da sua obra e a riqueza e pertinência do que defende, preferi optar pela devolução das ideias e propostas concretas apresentadas, seguindo o seu pensamento a par e passo e recorrendo, frequentemente, às suas próprias palavras.
Sublinho, para começar, que neste seu envolvimento numa formação de agentes de terreno, o Professor aceita desviar-se da investigação pura e afastar-se, como ele próprio diz, de uma defeituosa ética científica[1]. Ou seja, a sua acção está comprometida com a realidade social e política da sociedade portuguesa naquele período.
Não sabemos se este curso apenas visava a formação de educadores de adultos para as comunidades rurais ou se o Professor preferiu esse foco, dada a sua experiência de etnólogo e a sua convicção de que as comunidades rurais constituem os grupos sociais mais carecidos de desenvolvimento[2].
Com base em autores consagrados e na sua própria experiência, Viegas Guerreiro caracteriza as comunidades rurais como sendo um grupo de pessoas que partilham um território, têm consciência da sua unidade económica e social, estão ligadas por laços familiares e de vizinhança, percebem o mundo do mesmo modo e têm comportamento semelhante. Refere, ainda, a desconfiança em relação às populações urbanas, que as desprezam e às quais se sentem inferiores, e assinala, na senda de Jorge Dias, o individualismo dominante nestes grupos sociais, que faz prevalecer o isolamento e as rivalidades sobre a ajuda-mútua.
Quando os formandos lhe perguntam como conseguiu integrar-se nas comunidades tradicionais que estudou, responde que foi através do meu interesse pela vida material, pelo conhecimento do nome das coisas, pelo conhecimento das actividades concretas. E remata, com grande sabedoria: É sobretudo uma atitude de humildade, de ouvir mais do que falar.
E quando os formandos afirmam que a rivalidade e mesquinhez estão igualmente presentes nas comunidades urbanas, o Professor faz questão de afirmar que as comunidades rurais e as comunidades urbanas não são entidades em oposição, uma é o prolongamento da outra. Pode existir o campo sem a cidade, a cidade é que não pode existir sem o campo, porque é o resultado do desenvolvimento do campo.
Assim, afirma a primazia do campo, mas não deixa de reconhecer os aspectos negativos das comunidades rurais. Acrescenta mesmo outro: Não entendem a natureza a não ser para produzir riqueza, a não ser para produzir benefícios materiais[3].


Felizmente, depois de referir a suposta incapacidade dos rurais para ultrapassar uma apreciação meramente utilitária da natureza, avança para uma reflexão essencial: E aqui ocorre lembrar que o mesmo espírito quando existente em populações altamente industrializadas pode levar à destruição da própria fecundidade da Natureza. Alerta judicioso num tempo em que as preocupações ecológicas estavam longe de fazer parte da agenda da maior parte dos intelectuais portugueses.
Chamado a trabalhar numa comunidade rural, o educador de adultos tem, segundo o Professor, de observar princípios, o mais importante dos quais foi formulado por um especialista do extensionismo rural, o alemão Possinger: “O homem do campo deve ser considerado sujeito e não objecto de uma política de desenvolvimento” [4].
Esta afirmação programática é essencial em termos éticos e tem consequências práticas, como realça Viegas Guerreiro de forma clara e empenhada. Se não o colocarmos no centro, como sujeito que é, e se não partirmos da sua realidade, corremos o risco de lhe levar mercadorias que não compra, ideias que não entende, práticas que não segue. Corremos o risco de o despersonalizar, de lhe roubar valores próprios sem deixar outros que lhe convenham, de lhe destruir a tranquilidade, de o perder, cuidando que se salva.
Compreende-se, assim, o falhanço das anteriores campanhas de dinamização cultural e alfabetização: conteúdo inadequado, tempo inoportuno, linguagem incompreensível.
Nada disto significa, porém, que a inovação não tenha lugar numa campanha de educação de adultos. As ideias novas são necessárias, imprescindíveis, só que têm de partir da realidade das pessoas rurais, para que as insiram na sua cultura, as insiram na sua forma de ver o mundo.
O longo convívio, atento e empático com as populações rurais, ensinou ao Professor que o seu conservadorismo, a sua recusa da mudança, corresponde a uma defesa do pão para a boca, e ao medo de que lhes falta por causa de qualquer modificação no seu modo de vida. Ou seja, decorrem de uma necessidade vital.
Daí que a introdução das inovações deva ser acompanhada, como frisa Viegas Guerreiro, de uma experiência piloto: as pessoas precisam de ver como as coisas se passam, têm de apreciar os resultados alcançados, antes de se disporem a adoptar novidades.
A minha experiência de trabalho com as populações rurais do interior serrano do Algarve permite-me confirmar a justeza da visão de Viegas Guerreiro, a começar pelo princípio irrecusável de as tratar como sujeito da sua vida e da sua história; passando pela necessidade de partir das suas realidades, em vez de lhes impor soluções desajustadas[5]; a acabar na decisão de as envolver de perto, para que possam ver com os seus próprios olhos e sentirem-se seguras relativamente às inovações propostas[6].
Com base nestas ideias, uma campanha de educação de adultos deve visar a sua formação integral, tendo em conta, qualidades do espírito e habilidades técnicas.
Em termos de currículo, avança com os seguintes domínios:
Alfabetização,
Técnicas de exploração agrícola,
Noções práticas de higiene e medicina,
Noções elementares sobre o mundo físico em que vivemos e o universo de que faz parte.
Transversalmente à abordagem dos diferentes conteúdos, a pessoa da comunidade rural tem de ser ajudada a tomar consciência dos seus próprios valores, que com tanta frequência subestima e apouca.
Acrescenta, ainda, um último domínio bem distinto, o da entreajuda, o da actividade comunitária, força moral e material sem a qual não se poderiam constituir grupos humanos.
Passa em revista as expressões do comunitarismo em Portugal[7] e questiona-se sobre a viabilidade dessas práticas, recusando, no entanto, a ideia de que são meros vestígios do passado. Lá onde tais fenómenos se observam, eles se explicam pelo circunstancialismo que os cria.
No entanto, não é saudosista, nem romântico: muitos estão em vias de extinção, isso é verdade. E porquê? Emigração interna e externa, desenvolvimento industrial e sua concentração nos meios urbanos, mecanização da agricultura, facilidade de comunicações que favorecem o trânsito das pessoas e mercadorias, trouxeram ao camponês um aumento de riqueza e capitalização em numerário que lhe permitem dispensar grandemente a ajuda vicinal, a troca de serviços.
Só que há costumes comunitários que seria fundamental preservar e dá exemplos concretos, como o dos baldios. Quando passam a propriedade privada, são, frequentemente, deixados ao abandono por donos desinteressados ou ausentes, com grande dano para as populações locais, muito em particular para os mais pobres, impedidos de aceder à lenha de que carecem.
O educador de adultos pode ter um papel essencial nestes casos, bem como no campo da formação de cooperativas agrícolas[8].
Termina a sua prestação sublinhando a qualidade do trabalho que se espera dos futuros educadores de adultos. A sua intervenção exige vocação, dedicação, generosidade. E quem não for capaz disso, quem aqui chegar com outros propósitos, desista do ofício, que de outro modo só de estorvo pode servir.
A participação do Professor Viegas Guerreiro no curso de educação de adultos em meio rural constitui, pois, um testemunho inequívoco do seu compromisso com a educação de adultos, nomeadamente das pessoas inseridas em comunidades rurais, e dá conta do cuidado que coloca na formação dos agentes para essa tarefa, para além da argúcia e saber com que o faz. Acima de tudo, as suas palavras revelam o profundo respeito e carinho que as populações rurais lhe merecem.
Para mim, a sua participação no curso organizado pela Universidade do Minho é, ao mesmo tempo, lição de saber e prova de humildade, manifestação da sua vocação de serviço e afirmação da sua autoridade de Mestre.
_____________________
[1] Neste texto, o itálico assinala a transcrição das próprias palavras do Professor.
[2] Esta visão resulta, seguramente, da sua grande proximidade e interesse pelo mundo rural, embora também possa sugerir uma certa distância e desconhecimento das comunidades urbanas marginalizadas.
[3] Neste particular, cabe dizer que a sua afirmação não corresponde à experiência e sentir de toda a gente. A título de exemplo, recordo, a ternura com que José Saramago fala dos seus avós camponeses: um a despedir-se afectuosamente das suas árvores antes de morrer e outra a recordar como o mundo é bonito.
[4] Citação feita por M. Gomes Guerreiro, no artigo “Metodologia e Filosofia da Extensão Rural. Dificuldades de actuação do extensionismo”, publicado no jornal República de 11 de Outubro de 1974.
[5] Recordo a este respeito o Projecto de Valorização da Cabra Algarvia, desenvolvido em parceria pela Direcção Regional de Agricultura, a Universidade do Algarve e a Associação In Loco no final dos anos 90, em que foram testados diferentes equipamentos de ordenha, do simples balde melhorado para a recolha manual, cabra a cabra, até ao cais de ordenha, de modo a responder às condições concretas de cada tipo de exploração existente na Serra.
[6] No mesmo projecto, os vários tipos de equipamentos de ordenha foram colocados nas próprias explorações dos caprinicultores, ou seja, foram testados por eles em situação de investigação “on farm”.
[7] Com base na resenha de Jorge Dias na monografia Rio de Onor.
[8] Não chega, no entanto, a tratar deste tema, uma vez que será abordado de forma desenvolvida durante o curso pela Professora Carminda Cavaco.
_____________________
MARIA PRISCILA SOARES | Nascida em Junho de 1949 no distrito de Braga, concluiu uma licenciatura em Filosofia pela Universidade do Porto e envolveu-se num processo de formação continua em diversas áreas: Concepção e Avaliação de Projectos, Metodologias Participativas, Animação de Comunidades de Prática, Aprendizagem Experiencial, Trabalho Voluntário, História de Vida, Desenvolvimento Pessoal, Mediação, Modelos Organizacionais, Moedas Locais, Realização de Filmes, Produção de Programas de Rádio, Formação de Actores, Chi Kung… Iniciou a sua actividade profissional como professora (2.º ciclo, ensino secundário e por fim ensino superior, na Universidade do Minho, ligada à formação inicial e em serviço de Professores).
Após sete anos de docência, integrou a equipa responsável pelo lançamento de um projecto de desenvolvimento no interior rural do Algarve, sedeado na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Faro (1985), que deu lugar, três anos depois, à criação da Associação In Loco, de que foi sócia fundadora e presidente da direcção por 11 anos. Até se reformar, em 2015, dedicou-se à concretização de uma grande multiplicidade de projectos e de iniciativas apostadas na promoção do desenvolvimento de base local (participado, sustentável e inclusivo) e da cidadania activa na Serra do Caldeirão.
Foi responsável pela concepção, desenvolvimento e avaliação de projectos em diferentes áreas: desenvolvimento local integrado, criação de microempresas, organização de produtores, formação profissional (especialmente de mulheres, pessoas desempregadas, animadores de desenvolvimento local), investigação-acção sobre a valorização e promoção de produtos locais, preservação do património natural e cultural, inclusão de migrantes… Estes projectos foram concretizados no quadro da Iniciativa LEADER, Programas NOW e EQUAL, artigo 8.º do FEOGA, artigo 6.º do FSE e diversos outros programas nacionais e europeus.
Foi ainda responsável pela avaliação de vários projectos e intervenções, em Portugal e no estrangeiro, na qualidade de consultora independente.
Para além de comunicações em seminários e encontros, da participação em programas de rádio e de televisão, escreveu ou coordenou publicações sobre desenvolvimento local, animação social, formação para o desenvolvimento, dificuldades e necessidades da produção e produtores locais, inclusão de imigrantes.
_____________________
O artigo A educação de adultos em comunidades rurais: actividades comunitárias (Universidade do Minho, 1978) pode ser lido na íntegra, a par com outros já digitalizados, no separador Bibliotecas/Biblioteca-Museu MVG/Colecção Bibliográfica MVG ou através do link https://www.fundacao-mvg.pt/wp-content/uploads/2024/09/Educacao-de-adultos-em-comunidades-rurais_c_pag_340.pdf.