Manuel Viegas Guerreiro em «Etnografia e Geografia: Leite de Vasconcellos e Orlando Ribeiro»: Breves considerações sobre um Texto Singular
POR MANUEL CARLOS PATRÍCIO
A propósito do encontro improvável de um velho e renomado etnólogo com um jovem e promissor geógrafo, Manuel Viegas Guerreiro dá, neste artigo, um rigoroso e abundante testemunho da sua observação participante, como amigo e colaborador de ambos, acerca da extraordinária relação pessoal e científica entre Leite de Vasconcellos e Orlando Ribeiro, dois vultos incontornáveis da cultura portuguesa, proporcionando, assim, ao leitor, a oportunidade e o privilégio de sentir, num quase dia-a-dia, a amizade e a frutuosa colaboração entre dois amigos, um Mestre e um discípulo, que, à vez, se revezavam a ensinar e a aprender, numa incrível demonstração de troca de saberes.
Em termos pessoais, essa relação está bem ilustrada no “afecto [com] que se referiam um ao outro” e de que são exemplos sobejos quer a preocupação de Leite de Vasconcellos com a saúde do amigo, dizendo-se “em cuidados com o Orlando, [que] anda magrito, não está nada bem”, quer o “calor humano com que [Orlando Ribeiro] quebrava a amarga solidão daquela casa de Campolide” [1] onde morava o velho Mestre. A leitura da vasta correspondência trocada entre ambos, hoje bem documentada e já publicada [2], disso dá um cabal testemunho.
Em termos científicos, basta referir, como prova bastante, “a oficina de erudição que era a casa do mestre”, reconhecida por Orlando Ribeiro nos seus Ensaios de Geografia Humana e Regional, e o “auxílio pronto e eficiente” de Orlando Ribeiro que Leite de Vasconcellos, “parco em elogios”, acha merecedor de “menção especial” e faz questão de incluir na «Prefação» dos volumes II e III da sua monumental Etnografia. A expressão máxima da alta consideração que Leite de Vasconcellos tinha por Orlando Ribeiro está bem patente numa carta de recomendação, com data de 20 de Julho de 1940, que Leite dirigiu a “uma personalidade portuguesa, de posição cimeira” mas não identificada (embora se presuma tratar-se do Ministro da Instrução Pública), que Orlando deveria entregar pessoalmente mas que, por infeliz coincidência com troca de ministros, nem chegou a entregar e onde Leite declara o seguinte: “Vai receber uma carta minha com a qual lhe apresento o D.or Orlando Ribeiro, um dos meus mais íntimos amigos, meu testamenteiro, e a quem devo muitas obrigações de carácter literário […]” [3].
Admitindo que a afinidade e a frequente complementaridade entre geógrafos e etnógrafos é o corolário natural de séculos de vivência em comum, Manuel Viegas Guerreiro começa o seu artigo com o relato sumário da evolução dessas áreas do Saber, transformando, desde logo, em decorrência natural da referida afinidade, não apenas a estreita relação científica entre Leite de Vasconcellos e Orlando Ribeiro, como também a concordância de ambos na primazia do trabalho de campo em relação ao trabalho de gabinete, na importância conferida à observação in loco quer do mundo físico, quer do mundo humano, na permanente disponibilidade e no gosto pela viagem mesmo quando sujeitos a eventuais contratempos ou situações menos agradáveis e, ainda, na facilidade de contacto com as populações locais. Sendo ambos excelentes e devotados cultores das suas áreas, em ambos se encontrariam plasmados, por certo, os traços característicos e absolutamente indispensáveis ao bom exercício das mesmas.
Recuando no tempo, Manuel Viegas Guerreiro recorda os “primeiros escritos de feição etnográfica” de que há notícia da Grécia antiga, onde “Heródoto que viveu no século V antes de Cristo descreve os costumes dos povos com os quais os gregos estiveram em guerra”, e aponta essas histórias “como relatos geográficos, etnográficos e históricos” [4], remetendo para esse passado longínquo os primórdios da Etnografia e fazendo, assim, a demonstração da remota origem da estreita relação entre a Geografia e a Etnografia.
Na verdade, ao longo de séculos, os saberes geográfico e etnográfico partilharam o espaço comum de uma Geografia Geral, essencialmente descritiva e enciclopédica, a qual, mantendo o estatuto de saber abrangente, ainda que com explicações de carácter apriorístico, teleológico ou mesmo metafísico, deu origem, ao nível local, a “numerosas corografias e escritos de índole corográfica, embora lhes dêem outros nomes (Geografia, História, tratado, descrição)” [5] – razão pela qual não competia ao geógrafo apenas a descrição dos lugares mas também a descrição dos povos e de seus costumes.
A partir de finais do século XVIII e, sobretudo, ao longo do século XIX, com o confronto do paradigma clássico com o moderno e, nomeadamente, com a oposição entre as correntes idealistas e positivistas, tornou-se inevitável a definitiva clarificação entre Ciências da Natureza e Ciências Sociais e a consequente afirmação da Etnografia como uma ciência autónoma em relação à Geografia, embora continuando a existir entre estas últimas uma frequente relação de mútuo proveito.
A Geografia, sendo a ciência charneira entre o mundo físico e o mundo humano, foi oscilando – por virtude dessa sua singular característica e no contexto do já referido confronto ideológico entre posições idealistas e positivistas – entre as metodologias de explicação e de pretensa objectividade científica e as metodologias de compreensão [6] com as quais se preservam as singularidades individuais mais adequadas ao tratamento de questões das Ciências Sociais. Convém, contudo, referir que, perante a progressiva e quase universal aceitação das ideias positivistas e evolucionistas, e em resultado da consequente valorização, em termos metodológicos, do método empírico-indutivo, a Geografia mostrou-se particularmente sensível àquilo a que Foucault chamou a segunda grande descontinuidade na épistémè ocidental.
Justificada a secular ligação da Etnografia à Geografia, a natural persistência de uma forte relação entre ambas e a frequente complementaridade de que ambas têm beneficiado e que, de algum modo, se encontra pessoalmente reproduzida na relação científica entre um etnógrafo e um geógrafo, ou seja, entre um velho Mestre e um jovem discípulo, com interesses científicos coincidentes em muitos aspectos, dada a mútua partilha de muitas normas, problemas e ambições, Manuel Viegas Guerreiro procurou, ainda, dar notícia, embora de forma sumária, de alguns aspectos da actividade científica de Leite de Vasconcellos e de Orlando Ribeiro, procurando enquadrar cada um deles no ambiente dos seus pares e da sua área através de algumas afirmações relevantes sobre o estado da arte em cada uma dessas áreas.
Em relação a Leite de Vasconcellos, Manuel Viegas Guerreiro, embora refira Teófilo Braga e Adolfo Coelho como “dois mestres que deram, pela primeira vez, em nossa terra, um tratamento científico à matéria” [7] etnográfica, considera que nenhum deles se aplicou ao trabalho de campo. Assim sendo, como, em seu entender, “não há Etnografia sem trabalho de campo, […] nesse sentido, Leite de Vasconcellos foi o nosso primeiro etnógrafo” [8].
Tal situação de um escasso contacto directo do etnógrafo com o seu objecto de estudo parece não ter sido um procedimento exclusivo de Portugal pois, como assinala Viegas Guerreiro, “quando o moço aldeão de Ucanha ouvia, à beira do Barrosa, da boca das mulheres da sua terra cantigas e mais cantigas e se metia a estudar o meio rural que o cercava, predominava ainda na Europa o trabalho de gabinete, a utilização do facto apurado por outrem” [9].
Além das qualidades referidas, ressaltam, no ímpar legado deixado por Leite de Vasconcellos, os inúmeros e valiosos textos publicados, a fundação da Revista Lusitana e do Arqueólogo Português, a criação do Museu Etnológico de Belém e, claro, a sua monumental Etnografia Portuguesa, fruto de materiais acumulados ao longo de 60 anos e de que ele só viu publicados três volumes, sendo os restantes sete fruto do empenho de Orlando Ribeiro e Viegas Guerreiro que, com uma extrema dedicação e também com a ajuda de alguns colaboradores, ordenaram, seleccionaram e editaram, de acordo com o exigente plano do velho Mestre, o abundante espólio por ele deixado para o efeito.
E se não há Etnografia sem trabalho de campo, o mesmo pode afirmar-se quanto à Geografia, razão pela qual afirma que Orlando Ribeiro foi o nosso primeiro geógrafo.
Refere antes dele, como exemplo, o caso de Lisboa, onde Orlando foi aluno e onde o ensino da Geografia, conforme o seu testemunho, “era inteiramente teórico e verbal [pois] nunca fizemos uma excursão, nunca vimos um mapa de grande escala” [10]. Em seguida, Viegas Guerreiro cita Amorim Girão, que “não introduziu [o trabalho de campo] na regular metodologia do seu ensino” [11], e o prometedor mas fugaz Vergílio Taborda, “um dos mais vigorosos espíritos da Geografia Portuguesa” [12] segundo o próprio Orlando Ribeiro (para quem a tese de doutoramento de Vergílio era “o melhor exemplo de um estudo de região em Portugal” [13]).
Em Orlando Ribeiro, segundo Viegas, “Geografia e História davam-se as mãos, em discurso como nunca ouvimos outro”. Além disso, sendo ainda “mais andarilho que Leite de Vasconcellos” nas saídas de campo, “era um regalo vê-lo conviver com o povo” e ouvi-lo “fazendo matéria de tudo quanto via, dos acidentes do terreno aos modos de vida e formas de povoamento” [14].
Orlando Ribeiro, influenciado pela leitura de Vidal de La Blache, entre História e Geografia optou por esta última, praticando, neste aspecto, uma geografia possibilista, mas diferenciou-se de Vidal de La Blache no que diz respeito à relação Homem-Meio – o que é uma decorrência natural dos contextos espaciais e temporais em que cada um viveu, sobretudo se nos recordarmos da França do jovem Vidal, então saída da derrota humilhante de 1870-71 frente à Prússia, e da premente necessidade que este sentiu em contrapor à “lei dos espaços em expansão” (Gesetz der wachsenden Räume, 1882 e 1896) e ao “espaço vital” (Lebensraum, 1897 e 1901-2), presentes na antropogeografia de Friedrich Ratzel (1844-1904), os domínios de civilização da sua geografia possibilista, ajudando, assim, a combater o imperialismo do Reichskanzler Otto von Bismarck (e, depois, do Kaiser Wilhelm II) e a justificar, em simultâneo, o crescente expansionismo da política colonial francesa. Já Orlando Ribeiro, um geógrafo de um outro contexto e de uma outra época, embora afirme que, “sous des formes nuancées et complexes, le déterminisme demeure, en Géographie humaine, une condition logique de toute interprétation”, não deixa de assinalar que “il convient d’examiner de plus près l’outillage dont l’homme dispose et qui permet de le considérer, à juste titre, comme «facteur géographique»” [15].
No entanto, um e outro deram mostras de acompanhar o progresso tecnológico do seu tempo, quer no tocante à influência de novas técnicas, quer no que diz respeito à alteração das condições históricas e sociais daí decorrentes. A este propósito, bastará recordar que a notável evolução do pensamento de Vidal de La Blache entre o Tableau de la Géographie de la France (1903) e o La France de l’Est: Lorraine-Alsace (1917) não passou despercebida a vários autores, inclusivamente a Yves Lacoste – um geógrafo que se situa nos antípodas de Vidal e que, em 1979, publicou, a este respeito, um artigo na revista Hérodote com o seguinte título irónico: “A bas Vidal… Viva Vidal!”.
Por seu lado, Orlando Ribeiro, inegável detentor de um excepcional domínio em ciências afins da Geografia, em resultado da sua enorme curiosidade científica e do estreito convívio e até parceria com inúmeros cientistas de renome a nível nacional e internacional, além da sua excelente docência, deixou abundante bibliografia publicada, deixou brilhantes discípulos nas principais escolas do país, fundou o Centro de Estudos Geográficos, um centro de referência no país e no estrangeiro, e redigiu o admirável e intemporal Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, um livro de consulta obrigatória em escolas de várias áreas e ao qual ele chama, simplesmente, “um esboço de síntese das relações geográficas do nosso território” [16].
Em jeito de conclusão e reforçando a ideia que percorre todo o artigo de Manuel Viegas Guerreiro, mostrando a estreita relação entre a Geografia e a Etnografia, não deixa de ser curioso e pertinente assinalar que também Vidal de La Blache, a exemplo de Leite de Vasconcellos e Orlando Ribeiro, se interessou em particular por assuntos relacionados com a Etnografia, como o provam os diversos textos escritos sobre essa temática como, por ex., o artigo “Ethnografie. L’éducation des indigènes”, publicado na Revue Scientifique em 1897, ou o “Les conditions géographiques des faits sociaux”, publicado nos Annales de Géographie em 1902.
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Nota pessoal: Como antigo discípulo do Professor Manuel Viegas Guerreiro, com quem tive a honra de conviver como amigo, e mantendo, por sua memória, um imenso respeito e saudade, não posso deixar de referir o seguinte: após a leitura atenta deste seu artigo, ressaltam no meu espírito, mais uma vez, não só os reconhecidos méritos do etnólogo, como também a excelência do Homem. Tendo sido Manuel Viegas Guerreiro, juntamente com Orlando Ribeiro, um dos pilares fundamentais para a preservação, tratamento e edição do vasto espólio de Leite de Vasconcellos, só mesmo alguém como ele é que não aproveitaria, ao longo deste seu artigo, as múltiplas (e inquestionavelmente merecidas) oportunidades de subir ao pódio. Honra à sua atitude e à sua memória!
[1] GUERREIRO, Manuel Viegas – “Etnografia e Geografia: Leite de Vasconcellos e Orlando Ribeiro”. Separata do Livro de Homenagem a Orlando Ribeiro. Lisboa, Centro de Estudos Geográficos, Vol. 1, 1984, p. 74.
[2] Vd. ALEGRIA, M. Fernanda; DAVEAU, Suzanne; GARCIA, João Carlos – Leite de Vasconcelos e Orlando Ribeiro – Encontros Epistolares (1931-1941). Lisboa, Museu de Arqueologia – INCM, 2011, 210 p..
[3] Idem, Leite de Vasconcelos…, pp. 24, 148 e 149.
[4] GUERREIRO, “Etnografia e Geografia…”, p. 63.
[5] Ibidem, p. 64.
[6] Utiliza-se, aqui, a sugestiva tipologia do historiador oitocentista alemão Gustav Droysen.
[7] Ibidem, p. 65.
[8] Ibidem, p. 69.
[9] Ibidem, p. 65.
[10] RIBEIRO, Orlando – Ensaios de Geografia Humana e Regional. Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1970, p. 16, in: GUERREIRO, “Etnografia e Geografia…”, p. 70.
[11] GUERREIRO, “Etnografia e Geografia…”, p. 70.
[12] RIBEIRO, Orlando – Opúsculos Geográficos II – Pensamento Geográfico. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, p. 171.
[13] Prefácio de Orlando Ribeiro à 2.ª edição (1987) de Alto Trás-os-Montes de Vergílio Taborda, p. 7.
[14] GUERREIRO, “Etnografia e Geografia…”, pp. 70-71.
[15] RIBEIRO, Orlando – “En relisant Vidal de la Blache”, in: Annales de Géographie, LXXVIIe année, n.º 424, 1968, pp. 649 e 654, respectivamente.
[16] RIBEIRO, Ensaios…, p. 16, in: GUERREIRO, “Etnografia e Geografia…”, p. 73.
MANUEL CARLOS PATRÍCIO é geógrafo. Professor aposentado do Departamento de Geografia (actual IGOT) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Doutor em Geografia (Geografia Humana), Mestre em Geografia Humana e Planeamento Regional e Local e Licenciado em Geografia pela mesma Universidade. Antigo investigador do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa (CEG-UL) e do Centro de Tradições Populares Portuguesas Professor Manuel Viegas Guerreiro (CTPP-CLEPUL). Membro do Conselho Geral da Fundação Manuel Viegas Guerreiro.
