Nuno Júdice ou A Constelação Perfeita
POR LÍDIA JORGE
1.
Desde Março último os dias passam, criando novos compostos, mas os nomes de Nuno Júdice e Ausência continuam incompatíveis. Eu não consigo escrevê-los sobre a mesma folha de papel nem pronunciá-los em voz alta unidos por um traço. Esta evocação, uma cerimónia que tem todos os contornos de uma festividade, significa que este sentimento é de nós todos, sua família, sua mulher, seus leitores, seus amigos, admiradores e companheiros de percurso. Todos somos testemunhas. Entre Nuno Júdice e Ausência estabelece-se uma distância que pretendemos ser sem fim. A isso mesmo alude, num texto a vários níveis notável publicado no dia 3 de Abril, no JL, o seu amigo e companheiro de poesia, Luís Filipe de Castro Mendes. Procurando, em filósofos e poetas, uma definição para aquela separação sem diálogo possível, a que aludimos sem querer pronunciar a palavra exacta, a morte, contrapõe Castro Mendes o fulgor da obra que permanece como um fruto perene, o objecto em que o poeta transformou a sua vida, desparecendo nela à medida que a foi construindo. Outros amigos de Nuno disseram-no, comovidamente, de outras formas – Guilherme Oliveira Martins, Ricardo Marques, José Carlos Seabra Pereira, António Carlos Cortez, Vítor Serrão, e tantos outros. Eles e todos nós, aqui reunidos, sabemos que a voz de Nuno Júdice é singular, poderosa, capaz de manter a distância entre o seu nome e a ausência, continuidade alargada sem fim ao longo do futuro que há-de vir. Um voz multívoca, feita da Poesia, Ficção, Ensaio, Crónica, Recensão, Tradução, Teatro, Crítica, crítica à crítica, esse modo ousado tão pouco português, e curadoria de revistas onde foi mentor, divulgador, tutor de escritores clássicos e modernos, e contemporâneos, além que soube ser uma ponte entre o institucional e o informal, colocando-se ao lado dos mais jovens, recuperando os esquecidos, desencantando obras crípticas que trouxe à luz. Pensando nesse labor tão intenso, e tão ousado, inscrevo Nuno Júdice na lista dos maiores criadores da nossa geração, ao mesmo tempo que deve figurar com destaque no portal estreito dos intelectuais completos que amparam entre nós o espaço do pensamento erodido pela miúda dissensão portuguesa. Não importa- a obra de Nuno Júdice estabelece-se em torno do seu nome como uma constelação perfeita e mantém viva a companhia com que contávamos até ao passado mês de Março, como um amparo que prossegue. Ter sido por si chamada, tantas vezes, e tantas vezes ter sido sua companheira de cadeira, faz que me sinta grata por me terem convocado para este encontro festivo em torno do seu nome.
2.
Devo dizer em abono da verdade que conheci os livros antes de Nuno Júdice antes de o ter encontrado pessoalmente. Em 1980, acabava de publicar O Dia dos Prodígios, e ainda desconhecia a demanda que a publicação de um livro pode implicar. Na Primavera desse ano, pediram-me que respondesse a umas perguntas directas num programa de rádio, e de entre outras exigências mais ou menos frívolas, pediram-me que elegesse um lugar especial, um poeta e um poema. Escolhi Sagres, Nuno Júdice e dos livros dele um poema que li nos estúdios do velho Quelhas – Tinha por título A prova do humano e começava assim – Quem terá notado o gesto subtil do velho quando/ ao enrolar o tabaco, limpou o indicador cheio de cuspo/ no tampo da mesa? Ali, há exactamente dois dias,/Sentara-me eu a escrever reflexões religiosas e um canto/ filosófico… E assim por diante. Então o jornalista que me entrevistava juntou um comentário – Compreende-se, ambos são do Algarve. Eu não tinha notado esse pormenor.
Dos dois livros que possuía em casa, um deles de capa verde, não sei como, não tinha retirado nenhuma nota biográfica, apenas a efígie da capa mostrava um rosto tão jovem que me parecia de um figura imberbe ou andrógina. Era a capa de Crítica Doméstica dos Paralelepípedos. Dois anos mais tarde, adquiriria outro livro, A Partilha dos Mitos, e com esse livro, cujo título poderia ser o título de toda a obra de Nuno Júdice, eu tive a ideia de que o poeta que eu não conhecia pessoalmente era um moderno descendente directo de Álvaro de Campos, e não um parricida como então todos os jovens poetas portugueses estavam obrigados a ser.
O autor dos livros de Nuno Júdice, que então eu tinha sobre a mesa, parecia-me ser um Álvaro de Campos que nas longas viagens tivesse perdido a soberba do conhecimento total, e tivesse regressado a pé, para escrever durante as tardes de chuva, sobre o encantamento que produz a melancolia da volta a casa depois do furor das batalhas mantidas com o grande mundo, guardando delas a memória pós-moderna da única certeza que nos assiste, a de que o des- conhecimento é a nossa pátria verdadeira. Isso me parecia ser o testemunho do poeta Nuno Júdice, ainda menino, na efígie. Hoje, eu sei que essa impressão da filiação na máscara mais álacre de Fernando Pessoa provinha da discursividade, da narratividade, da energia brutal que conduz ao entornamento do verso que de longo tem de dar a volta às linhas. Não encontrava os eh!, oh!, os rrr sem fim, próprios do alvoroço mental dessa máscara pessoana que pretende atingir os confins do universo. Nuno Júdice era outro, mas nele eu encontrava a mesma energia, a mesma ansiedade gostosa por tocar os ilimites das coisas. Enganei-me? Esta associação seria rejeitada pelo próprio Nuno? Não importa. A verdade é que só passados uns tempo me encontrei com o Nuno, e passados muitos mais tempos, compreendi que o seu silêncio era uma espécie de poupança para que o mundo reverberasse em si por inteiro, sem desperdício. Fui reparando, ao longo dos anos, que o Nuno se deslocava fisicamente imóvel como um pára-raios que recebe mensagens de todos os lados, processando em silêncio sobre o papel os dados, ora com épica, ora com humor, ora com prosódica distanciada, dando a aparência de quem não se entrega, entregando-se por inteiro à escrita como seu destino.
3.
O que aprendi com o Nuno foi muito. Sobre a persistência, a tenacidade, a alegria e o triunfo da escrita sobre a desordem da vida, a sua função, o seu serviço. E no entanto nunca falámos directamente sobre ofício da Literatura, apesar de a Arte Poética ser um dos seus temas de preferência, no que foi um moderno e um contemporâneo mais do que moderno. Precisamente, um dos seus livros ensaísticos mais interessantes é recente, data de 2019 e diz respeito à teoria e prática dos géneros, sobretudo o romance. Tem por título O Café de Lenine. Trata-se de um livro extraordinário, que revela o autor como um apto à narrativa com a mesma forma teórica repleta de riqueza informativa e assertividade com que discorre sobre Arte Poética na Poesia. Antes de tudo, um poeta, a Nuno Júdice cabe perfeitamente na máxima que se encontra no início do poema de Wallace Stevens (A High-toned old Christian Whoman) – Poetry is the supreme fiction, madame…, e para ilustrar o género, o género poética, essa suprema ficção, madame, escreveu nada menos do que 41 títulos. Mas sobre o outro, a narrativa, em O Café de Lenine, Nuno constrói imagens inesquecíveis como aquele em que compara o escritor de um romance a Fabrice del Dongo, o personagem da Cartuxa de Parma de Stendhal, militar perdido no nevoeiro da Batalha de Waterloo, sem saber onde se encontra nem a que exército deve obedecer. A catástrofe que foi para Napoleão Bonaparte essa batalha não interessa. Interessa o nevoeiro e a desorientação experimentada até encontrar uma saída. São deliciosas as páginas 28 a 30 desse livro. Aliás, todo o livro é delicioso e escrito para os colegas seus parentes próximos no ofício da escrita de invenção. Revi-me e revejo-me na sua deambulação airosa, irónica, por vezes jocosa, penetrante. Uma companhia amena, inteligente, e, vendo bem, instrutora num meio, que é nosso, que tem tanta dificuldade em sorrir.
3.
Nuno Júdice, companhia, instigadora companhia, serena e iconoclasta em simultâneo, é assim toda a sua obra poética composta por 41 títulos. Mas não é ao acaso que escolho de entre todos, hoje em dia, O Estado dos Campos, esse livro de 2003 que me parece ser um volume ponto de chegada da sua obra poética até aí publicada e ponto de partida para os restantes títulos que viria a publicar até Uma Colheita de Silêncios, de 2023. Nele, um conjunto de 87 poemas sob o signo da bucólica, Nuno Júdice percorre a globalidade dos seus temas recolhidos dos campos semânticos da Botânica, da Zoologia, da Pintura, da Teologia, da Religião, da Filosofia, da análise literária e da Arte Poética, bem como do mundo amoroso e do mundo doméstico, com as naturezas mortas onde o foco pousa sobre uma laranja descascada. E nele se nota a recusa definitiva do uso da desconstrução da gramática verbal, como se o entendimento directo, sem entraves nem anacolutos fosse a sua escolha. Entre Nuno Júdice e os leitores de poesia, apenas a fina gramática do quotidiano verbal, como uma dádiva feita em nome da transversatilidade do poema. Uma oferta ao leitor, sem máscara nem socalcos.
Sobre O Estado dos Campos, o leitor intuitivo que era Jorge Listopad escreveu em 7 de Junho de 2003, no Jornal de Letras – À mesa com poesia –Sobretudo, tenho prazer puro ao ler o livro de poesia, essa arquitectura verba, esse gobelin de zona especificamente demarcada, que é o volume de Nuno Júdice, “O Estado dos Campos”. Larga discursividade sem renegar a musicalidade de rigor, o lado hínico filtrado pela economia, o cerimonial sem medo de contemporaneidade civil. Claudel por momentos, mas também Rilke, mas sobretudo “Un certain sourire” de Camões, tudo porém, com a respectiva distância, devida à originalidade: aí se move uma voz plena.
4.
Tentar enquadrar um poeta entre os nomes de referência é não só legítimo mas também útil porque clarifica. Pertencer a uma família ajuda a definir um rosto. Jorge Listopad, porém termina mencionando que se está perante Uma voz plena. Onde está a voz plena de Nuno Júdice? A resposta certa creio ser esta – Está por toda a parte, é inconfundível. Neste livro, como disse, ponto de chegada de muitas correntes no interior de Júdice e ponto de partida para o resto dos seus livros, já sem herança mas sim, preparando a sua descendência, pode ler-se o seguinte poema em forma de quase soneto:
POSOLOGIA
No lugar a que chamam alma, entre o rio/ da memória e os campos do presente,/ crescem flores, é eterno o calor do estio,/ e um pássaro canta, a tudo indiferente./// O que ali está poderá sempre durar/quando o corpo não aparece, arrogante,/ e logo a seguir exige o seu lugar,/ Fazendo da alma um astro distante.// Então, molho os pés naquelas águas,/ corto as flores, calo todas as naves;/ com o ruído, ponho em alvoroço as mágoas/// O melhor é deixar em sossego a alma,/ deixá-la no seu canto, contente e calma.
Sim, esta é uma voz plena, inconfundível, não vale a pena procurar encontrar desesperadamente lugares para Nuno Júdice na árvore das semelhanças e nos arabescos das escola literárias. A sua poesia diz-nos respeito como matéria primordial, e é quanto baste para de si mesmo falar quando termina o poema O Poeta, que lá fora gravado em pedra e diz assim – Fere, com a pedra do instante, o que passa a caminho da eternidade; suspende o gesto que sonha o céu; e fixa na dureza da noite, o bater de asas, o azul, a sábia interrupção da morte. É o que por ele sentimos.

Lídia Jorge na sessão evocativa a Nuno Júdice, a 6 de Julho de 2024, na Fundação Manuel Viegas Guerreiro
@Marinela Malveiro