Da indispensabilidade do latim
Uma reflexão
POR ADRIANA FREIRE NOGUEIRA
Recebi o honroso convite da Fundação Manuel Viegas Guerreiro, para analisar e comentar um escrito do seu patrono, intitulado Da indispensabilidade do latim na leitura dos nossos clássicos.
Manuel Viegas Guerreiro licenciou-se em Filologia Clássica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Cerca de 50 anos depois, andei pelos mesmos corredores a fazer a licenciatura que resultou da reestruturação daquela: Línguas e Literaturas Clássicas, variante de Estudos Clássicos e Portugueses. E não me estranha que um classicista tenha enveredado pela etnografia. Qualquer leitor de Heródoto (historiador grego do séc. V a.C.) tem dificuldade em não se fascinar com a diversidade de povos, de costumes, de tradições, de práticas, sejam elas sociais, religiosas ou guerreiras, que este autor nos descreve.
O texto em análise foi publicado em Lisboa, em 1963, e resultou de uma comunicação apresentada no Colóquio de Português e Latim, realizado no “Liceu Normal de Pedro Nunes”, de 22 a 25 de Fevereiro de 1960.
Viegas Guerreiro reage à ignorância dos que julgam entender palavras que fazem parte do uso comum, mas que, por não terem conhecimento de latim, quando leem autores do séc. XV a XVII, perdem o sentido real dos vocábulos. Para a sua apresentação, escolhe as palavras “monstro, generoso, levar, vil, moderar, modéstia, imbecilidade, decente e indecente”, passando também pela palavra “parvoíce”.
O público a quem se dirigia, em 1960, certamente terá sorrido a cada exemplo que apresentava. Sendo, provavelmente, todos os presentes classicistas, Viegas Guerreiro não considerou pertinente explicar que “monstro”, no poema do poeta eborense Garcia de Resende (1470-1536), queria dizer “prodígio”, “portento” (do latim, monstrum, -i)[1], já que de um menino precoce se tratava.
Imagino a audiência a entreolhar-se, de compreensão, quando Camões põe Baco a dizer que tem “qualidades generosas” e Viegas Guerreiro lembra o mesmo adjetivo usado em “vinho generoso”. Também não precisou de dizer que a palavra vem do adjetivo latino generosus, -a, -um, “de nascimento nobre”, “superior”, “excelente”.
O artigo continua com exemplos das palavras inicialmente apresentadas e de como mentes brilhantes, como Aquilino Ribeiro ou António Sérgio, recusando a importância do latim e mostrando desconhecimento desta língua, atribuem sentidos errados aos textos que leem. Refiro o caso do uso de “indecente” por Cavaleiro de Oliveira (1702 – 1783), que Aquilino pensou que queria dizer “indecoroso, pouco curial”, quando aquele autor escreveu “deve saber que não é permitido chorar sobre a vítima e que é indecente assistir aos sacrifícios com vestido de luto”. O que está subentendido no uso daquela palavra é a sua mais pura raiz latina, com o sentido de “inadequado”, como Viegas Guerreiro esclarece, sem ter de explicar que vem da forma latina indecens, -tis, a negação de decens, -tis, “adequado”, “apropriado”.
Se no início do séc. XX o sentido de muitas palavras usadas nos séculos anteriores estava sepultado, o que dizer das que ainda hoje usamos? Muitos empregam-nas sem verdadeiramente entenderem o seu alcance, ficando no “vestíbulo da compreensão”.[2]
Vejamos alguns exemplos.
Prestando atenção ao nome do liceu onde se deu o encontro, reparamos que o identifica como “Liceu Normal de Pedro Nunes”. “Normal”?
A designação “Normal” vigorou algumas décadas[2] no nosso país, querendo dizer que eram as escolas de formação de professores.[3] O Liceu Pedro Nunes recebia professores estagiários que iam aprender as “normas” (em latim, norma, -ae, “regra”, “preceito”).
Quem vai ao Mosteiro da Batalha e visita as lindíssimas Capelas Imperfeitas, a única imperfeição que encontra é a sua incompletude. Em latim imperfectus, -a, -um é um adjetivo que significa “inacabado”, “incompleto”. É esse o nome que damos ao tempo verbal que designa, entre outras, uma ação inacabada no passado. Já o tempo perfeito designa uma ação acabada no passado.
Que ninguém se sinta insultado por ser chamado de “incompetente”, pois isso não significa necessariamente que a pessoa não seja capaz de fazer algo, mas apenas que não tem capacidade legal suficiente para praticar determinados atos (do latim incompetens, -tis, “insuficiente”).
Se ninguém quer ser tido por “ordinário”, no sentido popular de “grosseiro”, já não se importará de o ser no sentido que nos traz o adjetivo latino ordinarius ,- a, -um , “aquele que segue a ordem”, “que está regular”, “que é usual”. Mas muito melhor é ser considerado extraordinário, ou seja, o que sai da ordem comum.
E que não se pense que é ordinário ser considerado “filho putativo”. O verbo puto, em latim, significa (entre outras coisas), “considerar”, “julgar”, “acreditar”. Daí que se chame, juridicamente, “filho putativo” ao que se “supõe ser filho de determinada pessoa cuja paternidade pode ou não ser investigada”.[4] O Professor Manuel Viegas Guerreiro, nos anos 60, afirma que “fica provado que não é possível entender totalmente os nossos clássicos sem saber Latim” e termina, declarando: “Por isso, por quantas boas razões aqui se têm vigorosamente enunciado, esperemos que o Latim, em tão infeliz hora suprimido do Curso Geral dos Liceus, a ele brevemente volte, com o lugar que merece, para lustre do nosso ensino e da cultura portuguesa”.
Eu subscrevo as suas palavras, mas deixaria algumas outras de esperança: é verdade que os Estudos Clássicos, enquanto ciclos de estudos, apenas subsistem nas universidades de Lisboa e de Coimbra, mas nas outras (entre elas, a do Algarve) oferecem-se disciplinas de Latim, Grego ou Cultura Clássica. Ainda há escolas, como a Secundária de Pedro Nunes (a herdeira do aqui referido Liceu), que mantêm um Departamento de Português/Latim e ainda oferecem esta língua aos seus alunos. No Algarve, alunos de Ciências e Tecnologia estudam Grego, no Agrupamento de Escolas Dr.ª Laura Ayres, em Quarteira. Também há associações a desenvolver trabalho com os professores, alunos e público em geral, oferecendo formação e cursos livres de línguas e culturas clássicas. Há colégios que têm como oferta de escola a disciplina de “Introdução à Cultura e Línguas Clássicas”, com turmas cheias de meninos de 10 anos entusiasmados com estes temas. E os dois centros de investigação portugueses da área, o Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa e o Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, obtiveram a classificação máxima, “Excelente”, nesta recente avaliação da Fundação para a Ciência e Tecnologia.
Há futuro para as línguas clássicas.
[1] Dicionário usado: Charlton T. Lewis and Charles Short, A new Latin Dictionary, New York/Oxford 1891 (1879) = Oxford 1958. Disponível em https://www.perseus.tufts.edu/
[2] Uma expressão feliz de Cristina Pimentel que frequentemente cito: “se não se conhecer a história, a mitologia, a literatura clássica, ficar-se-á numa espécie de vestíbulo da compreensão ou, tantas vezes, nem a esse limiar será possível chegar”. Pimentel, M. C. (2017). “De como os clássicos aumentam a fruição da Literatura”. In O Ensino das Línguas Clássicas: reflexões e experiências didáticas, coord. C. Cravo, S. Marques. Coimbra/ São Paulo: Imprensa da Universidade de Coimbra/ Annablume Editora, p. 36.
[3] Em França ainda existe a denominação de “École Normale” (como a École Normale Supérieure, por exemplo).
[4] Cf. o artigo de Joaquim António de Sousa Pintassilgo e Maria João Mogarro, que refere o funcionamento deste tipo de escolas: “A historiografia portuguesa da educação: balanço e reflexões a partir do exemplo da história da formação de professores”. Educação, Porto Alegre, v. 35, n.º 1, p. 28-41, jan./abr. 2012. Veja-se também o artigo do jornal Público, da autoria de Bárbara Wong , de 29 de Janeiro de 2006: “Liceu Pedro Nunes “Uma Escola Diferente Fez Um País Diferente”, disponível em https://www.publico.pt/2006/01/29/jornal/liceu-pedro-nunes-uma-escola-diferente-fez-um-pais-diferente-60863.
[5] Glossário OA de termos jurídicos, disponível em https://portal.oa.pt/cidadaos/glossario-oa-termos-juridicos/
ADRIANA FREIRE NOGUEIRA | Professora Associada na Universidade do Algarve. É investigadora integrada do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra e colaboradora do Centro de Investigação em Artes e Comunicação da Universidade do Algarve.
Licenciou-se em Línguas e Literaturas Clássicas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, foi bolseira Fulbright na Universidade de Cornell (EUA) e doutorou-se na Universidade do Algarve, no ramo de Literatura, na especialidade de Literatura e Cultura Clássicas, em 2001, com a tese: A Filosofia do Poder: Nomos e Physis e a lei do mais forte em Tucídides.
De numerosas conferências, artigos, capítulos de livros e livros de que é autora, destacam-se as suas traduções de grego de diálogos de Platão (Eutidemo e Teeteto) e, mais recentemente, de Diógenes Laércio, Vidas de Filósofos Ilustres, Livro 2.
Interessa-se por historiografia (Tucídides), filosofia grega, tradução, mitologia e receção da antiguidade na contemporaneidade.